A capacidade de superação dos limites sociais e
psíquicos constitui em uma das maiores marcas de realização do ser humano.
Nessa obra de memórias fica evidente essa luta desigual entre o sistema
destrutivo e aniquilador da guerra e a força de vontade para ir além de todo
esse complexo em busca da transformação da própria vida.
Ishmael Beah, narrador-personagem da obra,
relata sua história de quando era menino em Serra Leoa. Negro, pobre, sem
perspectivas de vida, sem sonhos e miserável, Ishmael contava com 12 anos de
idade e havia perdido toda a sua família na guerra civil. Iniciada bem antes de
seu nascimento, a guerra era fruto do desentendimento de dois partidos que
buscavam soluções para uma mesma nação. Na companhia de seus amigos, com suas
fitas K7 de raps típicos africanos nos bolsos, vão a uma apresentação em um
vilarejo. Ao chegarem lá, se deparam com toda a destruição causada pela Frente
Revolucionária Unida (RUF). Era o início de uma triste trajetória que nunca o
levaria de volta a sua vida no vilarejo de Mogbweno. Movido a garantir a
própria sobrevivência, Ishmael lutava para conseguir o que comer, mesmo
sentindo que, enganando sua fome com os escassos alimentos que encontrava,
deixava morrer outra parte de si. Desta forma, submetido às terríveis
atrocidades que lhe cercava, o menino é capturado, se rende aos guerrilheiros e
se torna um deles. Tamanho sofrimento lhe roubara a inocência infantil e o
transformara em uma máquina mortífera, de modo que não sentisse nada ao
assassinar a sangue frio quantos fossem necessários com sua AK-47. O uso de
drogas como cocaína e maconha misturadas também à pólvora, transforma-se como
um paliativo para que o lado humano do garoto não julgasse seu lado selvagem.
A vida como fugitivo era a única opção para o
garoto, muito antes que seus familiares fossem assassinados. No entanto, a
solidão é algo que Ishmael amenizara, por ter junto de si a companhia de seus
amigos guerrilheiros da mesma idade. No que diz respeito a isso, uma das partes
mais comoventes da narrativa é quando um de seus colegas é assassinado durante
uma batalha, o que toca profundamente os outros meninos. Desde então, Ishmael
passa a refletir no calabouço de sua própria existência. O socorro providencial
viria dois anos depois, com a chegada de militantes do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (UNICEF, United Nations
Children’s Fund, em inglês) que libertam um grupo de crianças de seu
batalhão e as levam a Freetown (capital de Serra Leoa) para serem reabilitadas
e voltarem a ter uma vida normal para adolescentes de suas idades. No entanto,
acostumados que estavam ao extermínio dos exércitos inimigos, os garotos
resistiriam com rebeldia, principalmente devido à crise de abstinência das
drogas. Desta forma, Ishmael fora retirado do palco de horrores em que vivia,
mas ainda tinha outra dura batalha a enfrentar: a superação dos fantasmas que
tamanha matança lhe faziam ser assombrado. Uma enfermeira, Esther, o acolheria
carinhosamente nessa tarefa, mesmo frente ao temperamento agressivo do garoto.
Muito
longe de casa: memórias de um menino-soldado é o relato das experiências dramáticas
e atrozes vividas por Ishmael Beah, então com 25 anos de idade. A história é
triste, comovente e revoltante. A sensação durante a leitura é de absurdo e ao
terminar transforma-se em superação. A evidência da gratidão do rapaz pela
reabilitação que sofrera fica demonstrada não somente ao fim do romance, como
também por sua militância na defesa das crianças e adolescentes vítimas da
guerra. Bacharel em ciências políticas pelo Oberlin College (EUA), Ishmael
tornou-se membro de uma ONG e participa de diversos congressos sobre crianças
afetadas pelas guerras. O desejo de salvar a vida de outros, tornou-se a mais
fiel expressão de sua gratidão para com a vida renovada que hoje tem.
BEAH, Ishmael. Muito longe de Casa: memórias de um menino-soldado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 222 pgs.
BEAH, Ishmael. Muito longe de Casa: memórias de um menino-soldado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 222 pgs.
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