quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Informação ao Crucificado (Carlos Heitor Cony)

Substanciando uma obra marcadamente autobiográfica, o autor lança mão do personagem João Falcão para abordar a questão do progressivo desencanto pela vida religiosa, consequência de um início sem raízes fideístas, mas tão somente estéticas.
João Falcão é um seminarista que está bem próximo da tonsura, ou seja, o ritual onde lhe seria conferido o primeiro grau da ordem. Em um livro diário verde, registra as principais memórias que contam sua crise vocacional, durante os anos de 1944 e 1945. O ingresso do jovem João no seminário havia se dado essencialmente porque achava bonito o “ser padre”, de forma que o desejo de consagrar sua vida a serviço de Deus e da Igreja não era o fator elementar a impulsionar sua vocação. Cumpridor de uma rotina repleta de estudos nas mais diversas áreas da filosofia e teologia, a ele encantavam os livros literários tidos como proibidos aos alunos, uma vez que poderiam fazê-los questionarem aspectos fundamentais de sua vocação, em um momento em que não estavam preparados para amadurecerem respostas para as mesmas. Essa desobediência já era um fator para que tivesse alguns atritos com seus superiores.
Na narrativa dos dias vivenciados pelo seminarista, vemos suas dúvidas vocacionais se entrelaçando em meio aos fatos corriqueiros do cotidiano. Estudos, rezas, celebrações, atividades recreativas, férias ocasionais são alguns desses momentos nos quais o autor informa ao leitor sobre seu calvário, no qual sua própria vocação estava em coma, conduzida sempre mais para a inevitável extinção. Em uma época em que a vocação sacerdotal era sinal de status e um motivo de orgulho para os familiares do vocacionado, João se angustia perante o choque que seus pais levariam ao saber que o filho estava deixando uma carreira promissora para entregar-se às aventuras decepcionantes do mundo. Contudo, ele opta pelo caminho da coerência, já que a imanência para com o divino era algo essencial que lhe faltava para continuar galgando os passos do sacerdócio.
A carga de responsabilidade para com a própria vocação que o livro transmite reflete a forma séria e exigente com que a sociedade e a igreja tratavam a preparação sacerdotal naquele tempo. Nas memórias do seminarista, vemos a formação muito mais como um peso a se carregar, ainda que a duras penas, do que uma fase de discernimento necessária para que o jovem seja capaz de consagrar sua vida espontaneamente à causa abraçada. O ambiente de erudição do seminário não deixa espaço para o debate das próprias crenças, nem para o amadurecimento das dúvidas vocacionais. O episódio cômico em que alguns seminaristas veem a filha do porteiro nua em um jardim é tratado como se os olhos dos mesmos houvessem levado-os a cometerem um crime contra a castidade, requerendo uma expiação severa.
Por meio dessa confissão pública, o autor concretiza uma crítica ao rigorismo daquele tempo, o que fez com que os ambientes de formação religiosa fossem pintados como locais à parte do mundo, ainda que inseridos nele e o tempo todo sujeitos às suas ciladas. Outra leitura que também pode ser feita e, nesse sentido, estendida a outras áreas da vida, que não a dimensão religiosa, é o perigo de permanecer em um caminho apenas pelo fascínio estético. João Falcão era um jovem que, mesmo advertido sobre a proibição de algumas leituras, não se rendia à curiosidade pelo conhecimento. Isso não faria dele um infrator, já que sua permanência no seminário apenas por achar bonita a prática sacerdotal, constituía-se em sua maior traição. Contudo, a insistência nesse caminho aumentava-lhe cada vez mais a angústia, de forma que, ao informar ao crucificado sobre sua crise de fé, necessitava também dar uma resposta a si mesmo e àqueles que nele depositavam suas esperanças.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:    Informação ao Crucificado
Autoria:  Carlos Heitor Cony
Editora:  Companhia das Letras
Ano:       1999
Local:     São Paulo
Edição:   5ª
Gênero:  Autobiografia | Espiritualidade | Drama

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