quarta-feira, 31 de maio de 2017

Duas narrativas fantásticas: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo (Fiódor Dostoiévski)

Definidas pelo próprio autor como “narrativas fantásticas” esse livro traz dois pequenos contos, os quais repercutem o talento do consagrado autor russo. Histórias que transcendem a narrativa dos fatos e contribuem filosoficamente para refletir sobre as questões que permeiam a existência humana e temas recorrentes na obra dostoievskiana: perdão, culpa, significado da vida, transcendência, etc..
Ambos os contos possuem um traço em comum que é o caráter autoreflexivo diante de um fato inicial, ao estilo de monólogos. No primeiro, A Dócil (1876), um ex-oficial que havia sido humilhado por recusar-se a cumprir uma ordem e que agora era dono de uma casa de penhores, de repente se apaixona por uma jovem recém-saída da adolescência, pobre e órfã. Nessa narrativa breve, ele apresenta suas impressões sobre a vida a dois, buscando desvendar os segredos que a parceira trazia em seu íntimo e, para além de tais reflexões, buscando compreender os motivos que a levaram ao suicídio, quando tudo parecia ir muito bem. Ele havia evitado que a garota se casasse com um homem rude e também contribuíra para que ela saísse da casa das tias. No entanto, era ele quem ditava às regras dentro de casa, fazendo com que ela se tornasse uma esposa submissa e servil, enunciando os ares introspectivos em que vivia. Tudo isso é refletido quando ele se encontra diante do corpo da amada, arrependido por seus cinco minutos de atraso, o que, em sua opinião, poderia ter evitado aquele desfecho trágico.
No segundo, O Sonho de um Homem Ridículo (1877), um homem decidido a por fim na própria vida, está sentado em sua poltrona, diante de um revólver carregado. Contemplando a arma, adormece e viaja por um sonho utópico que, em síntese, traduz a dor e a beleza da própria vida. Ainda que seja um sonho, reveste-se do mais puro realismo, e leva-o à compreensão de que é ele mesmo quem perverte as situações, fazendo com que elas pareçam não ter qualquer valor ou que sejam piores do que realmente são. Tudo isso é vivenciado a partir do encontro com uma menininha, que o leva a enxergar que ainda há muito o que viver. No mais belo estilo dostoievskiano, a reflexão conduzirá o homem a ver a beleza oculta nas tragédias da vida, fazendo com que ela seja algo válido: “’A consciência da vida é superior à vida, o conhecimento das leis da felicidade – é superior à felicidade’ – é contra isso que é preciso lutar!” (p. 123).
As duas pequenas narrativas condensadas nesse livro permitem uma breve noção do pensamento filosófico de Dostoievski em seu caráter existencialista. Autor de livros grandes e densos, nesses dois contos é possível compreender como o homem está no centro de sua própria metafísica, sendo que as inconsistências da vida é o que o levam a refletir sobre como ele se posiciona frente aos acontecimentos. Interessante na obra do pensador russo é o fato de que, diferentemente de muitos pensadores existenciais que exageram no drama, dando a impressão de que a vida, ainda que bem vivida, é um constante pessimismo, Dostoievski, ao contrário, parte dos dramas para as superações, dando o tom de transcendência e realização humanas. Para ele, o homem que reflete seus infortúnios, ainda que seja triturado por eles, no final deve encontrar um caminho de síntese que o faça transcender para níveis existenciais mais elevados e reconfortantes. É o que acontece, principalmente na segunda narrativa desse livro. Ao leitor que se pôs a refletir um pouco com essas duas histórias, fica o convite para mergulhar ainda mais na obra de Dostoievski que, louvores à parte, é um dos melhores remédios para as grandes crises existenciais dos tempos modernos.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:      Duas Narrativas Fantásticas
Subtítulo: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo
Autoria:    Fiódor Dostoiévski
Editora:    Editora 34
Ano:         2003
Local:       São Paulo
Gênero:    Drama | Filosofia

Confira o curta-metragem de "O Sonho de um Homem Ridículo" produzido em 1992:


domingo, 21 de maio de 2017

Tibério (Allan Massie)

            A história do imperador contada por Allan Massie nesse quarto volume da Série Senhores de Roma, é a história do homem cujas circunstâncias da vida levaram-no a tomar decisões contrárias a suas verdadeiras aspirações, no intuito de servir a um bem maior: seu dever para com o Estado.
            Tibério havia se casado com Vipsânia e era feliz. Contudo, após a morte de Agripa, general do Imperador Augusto, por conveniência política o imperador fez com que Tibério se divorciasse e contraísse uma nova união com sua filha viúva, Júlia. Augusto havia concedido a Tibério títulos e honrarias que o destacavam entre os senadores mas que, no fundo, alimentavam o despotismo do imperador. Após 20 anos de serviço à República, Tibério decidiu se exilar na Ilha de Rodes, onde dedicaria sua vida aos estudos, provocando grande contrariedade ao imperador. Uma traição cometida por sua esposa Júlia também impulsionara tal decisão.
            Nomeado como seu sucessor pelo Imperador Augusto, quando este falecera, Tibério assumiu o trono de Roma. Tentou convencer o Senado de que era necessário consolidar o império ao invés de expandi-lo, bem como acabar com o despotismo, descentralizando o poder. No entanto, a opinião dos senadores era contrária, obrigando-o a promover campanhas que expandissem os domínios de Roma, principalmente ao norte, nos territórios da Germânia e Panônia. Tibério e o Senado tiveram alguns atritos e o poder deste foi reduzido, embora ainda permanecesse como o principal detentor das nomeações de magistrados.
            Tibério destacou-se por sua carreira militar e por consolidar o poder romano principalmente em suas fronteiras. Foi durante seu governo que Jesus Cristo foi crucificado, muito embora este episódio não tivesse representado grande impacto em Roma. Em relação aos judeus, o imperador tomou medidas que fizeram com que toda a comunidade fosse exilada. Um de seus principais aliados, Lúcio Élio Sejano, havia sido executado logo após descobrir uma conspiração para destronar Tibério. Tal fato contribuiu ainda mais para a paranoia que o imperador já alimentava pelas conspirações. Tibério zelou pela conservação da Pax Romana alcançada a duras penas pelo seu antecessor. Decretou o fim das batalhas entre os gladiadores, consequentemente provocando o ódio entre a população. Faleceu em 37 d.C., suscitando o regozijo do povo romano.
            A história descreve Tibério como um homem tímido e taciturno, atormentando pelas contrariedades que sofrera. Jamais sonhara em tornar-se imperador, sendo escolhido por seu padrasto Augusto, mesmo que a contragosto. As diversas campanhas militares e as conspirações que sofrera desgastaram ainda mais sua personalidade. Como uma biografia supostamente escrita pelo próprio imperador, nessa obra temos um pouco de sua filosofia, o modo de administração da república, suas memórias e reflexões em um universo repleto de disparates e inimigos. Enfim, uma narrativa sobre a dura tarefa de governar, ainda que as intenções sirvam a chamados maiores do que as próprias pretensões.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:   Tibério
Autoria: Allan Massie
Editora: Ediouro
Ano:      2005
Local:    Rio de Janeiro
Série:    Senhores de Roma, Os - Livro IV
Gênero: Épico

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Deus e a Cabana: entendendo a presença divina no best-seller de William P. Young (Roger E. Olson)

deus e a cabana          Depois do sucesso obtido pela publicação da obra de William P. Young, Roger E. Olson, PhD e professor de teologia na George W. Truett Theological Seminary, na Baylor University (Waco – Texas), tece sua análise do tema proposto por Young. Mesmo sendo um romance de cunho exclusivamente fictício, A Cabana aborda questões muito próximas daquelas vividas por pessoas que passaram por situações semelhantes: sentimentos de perda, falta de fé, desilusão, tristeza, etc.. Sob uma ótica espiritual e religiosa, remetem à dúvida acerca da existência de Deus: se de fato ele nos ama, por que permite que crianças inocentes sejam assassinadas por maníacos, além de outras atrocidades que acontecem no mundo? Esta e outras questões são investigadas por Olson em Deus e a Cabana, à luz do próprio best-seller de William Young, da tradição bíblica e dos instrumentais da teologia.
          Apesar de lidar com aspectos teológicos como, por exemplo, a essência de Deus expressa em um único ser e três pessoas distintas que, no romance, Young materializa e identifica como Papai, Jesus e Sarayu, Roger Olson tenta deixar claro que o livro não deve ser confrontado com uma teologia nata. O propósito do autor de A Cabana era construir uma história que retratasse a presença de Deus na história dos homens e de um homem em particular: Mackenzie. Em vista disso, ele parte de um terreno mais real, que é fornecido pelo modo de entender Deus na ótica de algumas doutrinas religiosas. Isto não impede de confirmarmos muitos pontos que são abordados no romance, mas a aproximação deve ser cautelosa, já que a materialização de Deus não condiz com o ser com que os que acreditam nele relacionam.
          A análise feita por Olson vem mostrar dois planos de uma mesma realidade: a ação de Deus e a liberdade dos homens. Nesse aspecto se situa o relacionamento de um com o outro. A história de Young busca abordar o mistério do amor de Deus na procura do homem, mesmo quando não evita que ele passe por um sofrimento arrasador.
          Mesmo com uma história de vida marcada pela influência religiosa e dando mostras de que é adepto a uma religião, a análise de Olson não parte dos aspectos doutrinários de alguma igreja. Trata-se de uma visão mais holística do fenômeno da fé e não limitada por dogmas.
          Embora o autor enalteça a engenhosidade do romance de Young, ele também faz algumas críticas e discorda de alguns pontos-de-vista. Uma dessas é o fato de Young ressaltar uma fé muito individualista e nada abordar sobre a dimensão comunitária da mesma. Isto é visto por Olson, como uma falha do autor já que a ideia de que Deus é um ser de relacionamento e de comunhão, está explícita nas linhas do romance e nos diálogos de Mack com a Santíssima Trindade.
          Críticas à parte, Olson que mostrar a importância de se cultivar uma visão de Deus, não a partir de nossos sofrimentos e dores, mas a partir de seu imenso amor e sua capacidade de transformar nossas vidas. É esse o grande milagre da existência, de ter uma vida restaurada pelo perdão e pelo amor.
 
REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:      Deus e a Cabana
Subtítulo: entendendo a presença divina no best-seller de William P. Young
Autoria:    Roger E. Olson
Editora:    Thomas Nelson Brasil
Ano:         2009
Local:       Rio de Janeiro
Gênero:    Espiritualidade | Religião

Confira o trailer da adaptação do filme "A Cabana" para o cinema lançada em 2017:


segunda-feira, 1 de maio de 2017

O Mundo Mágico de Harry Potter (David Colbert)

            A fama dos livros de Joanne K. Rowling e sua disseminação entre os fãs do bruxo mais famoso da literatura contemporânea encerram segredos em suas entrelinhas. Afinal, em que a autora teria se baseado para criar todo o universo mágico do mundo de Harry Potter? Embora esse livro não tenha contado com a aprovação de Rowling e da Warner Brothers, David Colbert faz uma leitura muito interessante dos diversos elementos presentes na série e suas remissões a mitos, lendas e contos.
            O imaginário de um autor nunca é totalmente original ao criar uma história de sucesso, especialmente aquela que consagrou Joanne K. Rowling como uma das mais influentes autoras do público juvenil. O que o autor desse livro propõe é dar pistas e fazer comparações entre as criaturas mágicas, nomes, personagens e enredo a partir dos quais o mundo de Harry Potter surge com aquelas já consagradas pela história e mitologia das várias civilizações do ocidente e oriente.
            Inicialmente a saga se constrói sob um tema muito abordado na literatura e história de todos os tempos: a bruxaria. A esse tema se aliam outros semelhantes como a alquimia e a invocação das forças sobrenaturais e os poderes obtidos por meio da manipulação de elementos da natureza. Para criar seus personagens com originalidade, Rowling teria se baseado em outros bruxos e feiticeiros como aqueles provenientes de autores famosos como Shakespeare, Flaubert, Dickens, Ovídio e Tolkien. O mesmo acontece com seus personagens. Afinal, não seria mera coincidência que o famoso diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore, fosse descrito com uma fisionomia e modos muito parecidos aos de personagens famosos como Merlin (Rei Arthur) e Gandalf (O Senhor dos Aneis).
            Em relação às criaturas mágicas, algumas apresentam traços muito peculiares de seu próprio imaginário, mas todas surgem a partir de outras figuras mitológicas. É o que acontece com o unicórnio, os duendes, os hipogrifos, os dragões, os centauros e os grifos, todos eles presentes em diversos contos consagrados da literatura inglesa.
            Os nomes também conservam características peculiares da autora. O nome de Draco Malfoy, por exemplo, faz referência à dragão, uma criatura mítica a que todos os viventes temiam. O mesmo acontece com o feitiço Avada Kedavra o qual nada mais é do que uma construção desenvolvida a partir da consagrada invocação abracadabra.
            Uma ideia bastante original é o jogo de quadribol em suas regras. Contudo, a utilização das vassouras voadoras não é nenhuma novidade, uma vez que as bruxas dos contos infantis já eram conhecidas por sua capacidade de enfeitiçar objetos domésticos que lhe seriam úteis. Uma boa representação é o próprio cotidiano da mãe de Rony, quando usa a magia a todo o momento na execução de tarefas próprias do ambiente de casa.
            A partir das pinceladas acima é possível concluir que o universo mágico de Harry Potter recria elementos e figuras dos contos relatados desde muitas décadas. O que o autor desse livro objetiva é fazer um elogio à criatividade de Joanne Rowling em mesclar tantos contos famosos em uma história fascinante que encanta multidões leitores juvenis e adultos. Desse modo, mergulhar em um dos livros da saga Harry Potter torna-se muito mais do que mera distração literária e sim uma viagem através de lendas, contos e mitos parodiados em uma história envolvente e misteriosa.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:      Mundo Mágico de Harry Potter, O
Subtítulo: mitos, lendas e histórias fascinantes
Autoria:    David Colbert
Editora:    Sextante
Ano:         2001
Local:       Rio de Janeiro
Gênero:    Curiosidades | Livros