quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Informação ao Crucificado (Carlos Heitor Cony)

Substanciando uma obra marcadamente autobiográfica, o autor lança mão do personagem João Falcão para abordar a questão do progressivo desencanto pela vida religiosa, consequência de um início sem raízes fideístas, mas tão somente estéticas.
João Falcão é um seminarista que está bem próximo da tonsura, ou seja, o ritual onde lhe seria conferido o primeiro grau da ordem. Em um livro diário verde, registra as principais memórias que contam sua crise vocacional, durante os anos de 1944 e 1945. O ingresso do jovem João no seminário havia se dado essencialmente porque achava bonito o “ser padre”, de forma que o desejo de consagrar sua vida a serviço de Deus e da Igreja não era o fator elementar a impulsionar sua vocação. Cumpridor de uma rotina repleta de estudos nas mais diversas áreas da filosofia e teologia, a ele encantavam os livros literários tidos como proibidos aos alunos, uma vez que poderiam fazê-los questionarem aspectos fundamentais de sua vocação, em um momento em que não estavam preparados para amadurecerem respostas para as mesmas. Essa desobediência já era um fator para que tivesse alguns atritos com seus superiores.
Na narrativa dos dias vivenciados pelo seminarista, vemos suas dúvidas vocacionais se entrelaçando em meio aos fatos corriqueiros do cotidiano. Estudos, rezas, celebrações, atividades recreativas, férias ocasionais são alguns desses momentos nos quais o autor informa ao leitor sobre seu calvário, no qual sua própria vocação estava em coma, conduzida sempre mais para a inevitável extinção. Em uma época em que a vocação sacerdotal era sinal de status e um motivo de orgulho para os familiares do vocacionado, João se angustia perante o choque que seus pais levariam ao saber que o filho estava deixando uma carreira promissora para entregar-se às aventuras decepcionantes do mundo. Contudo, ele opta pelo caminho da coerência, já que a imanência para com o divino era algo essencial que lhe faltava para continuar galgando os passos do sacerdócio.
A carga de responsabilidade para com a própria vocação que o livro transmite reflete a forma séria e exigente com que a sociedade e a igreja tratavam a preparação sacerdotal naquele tempo. Nas memórias do seminarista, vemos a formação muito mais como um peso a se carregar, ainda que a duras penas, do que uma fase de discernimento necessária para que o jovem seja capaz de consagrar sua vida espontaneamente à causa abraçada. O ambiente de erudição do seminário não deixa espaço para o debate das próprias crenças, nem para o amadurecimento das dúvidas vocacionais. O episódio cômico em que alguns seminaristas veem a filha do porteiro nua em um jardim é tratado como se os olhos dos mesmos houvessem levado-os a cometerem um crime contra a castidade, requerendo uma expiação severa.
Por meio dessa confissão pública, o autor concretiza uma crítica ao rigorismo daquele tempo, o que fez com que os ambientes de formação religiosa fossem pintados como locais à parte do mundo, ainda que inseridos nele e o tempo todo sujeitos às suas ciladas. Outra leitura que também pode ser feita e, nesse sentido, estendida a outras áreas da vida, que não a dimensão religiosa, é o perigo de permanecer em um caminho apenas pelo fascínio estético. João Falcão era um jovem que, mesmo advertido sobre a proibição de algumas leituras, não se rendia à curiosidade pelo conhecimento. Isso não faria dele um infrator, já que sua permanência no seminário apenas por achar bonita a prática sacerdotal, constituía-se em sua maior traição. Contudo, a insistência nesse caminho aumentava-lhe cada vez mais a angústia, de forma que, ao informar ao crucificado sobre sua crise de fé, necessitava também dar uma resposta a si mesmo e àqueles que nele depositavam suas esperanças.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:    Informação ao Crucificado
Autoria:  Carlos Heitor Cony
Editora:  Companhia das Letras
Ano:       1999
Local:     São Paulo
Edição:   5ª
Gênero:  Autobiografia | Espiritualidade | Drama

domingo, 17 de dezembro de 2017

Cem Noites Tapuias (Ofélia e Narbal Fontes)



Quincas Venâncio é um garimpeiro que vive com o filho Quinquim em uma tapera no estado do Mato Grosso. Como a mãe do garoto já era falecida, cabia a Quincas a dura tarefa de extrair do garimpo o sustento para si e para o filho. Trabalhador dedicado, alimentava-o o sonho de um dia encontrar o diamante que finalmente seria capaz de fazê-lo descansara daquela lida e fornecer melhores condições de vida. Enquanto não chegava o sonhado dia, seguia sua labuta no garimpo, levando consigo o filho pequeno como acompanhante.
Certa vez o filho amanhecera meio adoentado e Quincas resolvera deixá-lo em casa, mesmo que as preocupações com a segurança fossem grandes. A região em que viviam era cercada de tribos indígenas, algumas delas pacíficas e outras selvagens, cujos ataques eram bastante comuns. Aquele dia preocupante traria consigo duas notícias opostas entre si: no garimpo, Quincas finalmente encontrara o objeto de seus sonhos; em casa, o filho havia sido raptado por um grupo de índios Xavantes, muito temidos por serem selvagens e perigosos. Além do garoto Quinquim, Joana Borora, que era indígena e professora, também havia sido levada. Joana socorrera diversas crianças da escola durante o inesperado ataque e se oferecera em lugar dos pequenos, a fim de poupar-lhes a vida. Para Quincas e os outros garimpeiros da Vila de Poxoréu, a luta contra o tempo seria fundamental para encontrar o filho e a professora, antes que algo pior viesse a acontecer.
Desde a morte da mãe, vítima de uma febre palustre (malária), Quinquim costumava acordar repentinamente todas as noites, clamando por ela. Preocupada pelo fato de que os índios pudessem interpretar isso como um grito de socorro pelas madrugadas, Joana assume um papel maternal na vida da criança e tem a brilhante ideia de acalmá-la através de uma história. Daí nasce uma história dentro de outra, sendo o personagem principal o jabuti Carumbé, que saíra de casa à procura do fim do mundo. Nos moldes do melhor folclore, Carumbé traduz a riqueza das histórias da cultura brasileira, assim como outras clássicas como o Saci-Pererê, Boitatá, Curupira, etc..
Cientes de que os brancos viriam em resgate dos reféns, os índios preparam uma emboscada para pegá-los desprevenidos. Contudo, a sagacidade de Joana leva-a a colocar uma mensagem dentro de uma porunga (cabaça de abóbora) e enviá-la rio abaixo. A estratégia funciona perfeitamente e os brancos chegam à aldeia em um momento em que somente mulheres e crianças estavam na tribo. Após cem noites junto aos índios, Joana e Quinquim são resgatados pacificamente. Após tomar conhecimento do carinho maternal que a professora dedicara ao filho, Quincas e Joana nutrem um profundo amor entre si e se casam em uma cerimônia bastante festejada na Vila de Poxoréu.
A história narrada pelo casal Ofélia e Narbal é extremamente leve e instrutiva. Além de celebrar os elementos da cultura matogrossense com palavras típicas e cenários bucólicos, a história de Carumbé enriquece a trama com uma mensagem de que, para além das próprias limitações, é aquilo em que acreditamos que nos move para seguirmos em frente. O desfecho feliz do resgate da professora e do garoto Quinquim transmite ainda mais leveza para a obra, demonstrando que índios e brancos podem conviver pacificamente, ainda que existam conflitos entre eles. Esperança, paciência e confiança são algumas das palavras que traduzem o escopo dessa obra, além de, é claro, o amor, capaz de superar as mais “tapuias” noites da vida.


REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:    Cem Noites Tapuias
Autoria:  Ofélia Fontes / Narbal Fontes
Editora:  Ática
Ano:       1976
Local:     São Paulo
Edição:   2ª
Série:     Coleção Vaga-lume
Gênero:  Infanto-juvenil | Drama

quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Qual é a tua obra?: inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética (Mario Sergio Cortella)

Debater alguns temas que cercam a tríade da gestão, liderança e ética é o que o aclamado filósofo contemporâneo brasileiro se propõe nessa obra.
Afinal, qual é a obra de cada ser humano? Aqueles que se fizerem essa pergunta talvez consigam uma rápida resposta que perpasse pelos seus mais preciosos motivos existenciais: trabalho, família, fama, ser lembrado, não ser esquecido, etc.. No entanto, em suas tarefas da rotina, nem sempre reconhece o impacto de suas pequenas ações repetitivas naquele todo maior que constitui sua obra, ou seja, o horizonte de sentido/significado capaz de fazê-lo ter um propósito com potencial para tornar a própria vida algo memorável e essencial.
Saber qual é a própria obra é inserir-se na dinâmica da vida, estando sempre aberto às mudanças que fazem com que nós, seres humanos, sejamos capazes de evoluir. Não é de se admirar que são as ondas e os ventos que empurram o barco na direção em que ele se projeta... Dessa forma, o autor trabalha também com a noção de que educação é a reinvenção do conhecimento tornando-o útil e importante para que os indivíduos sejam pessoas melhores, mais capacitadas e, consequentemente, mais reconhecidas como importantes naquilo que fazem. Importantes e não insubstituíveis! Daí a importância de cada um ser capaz de romper suas zonas de conforto, romper os medos e antecipar-se às situações. São características essenciais que diferenciam substancialmente os verdadeiros líderes. Nessa ótica, sábio é aquele que encontra o ponto de equilíbrio que evita tanto a cautela imobilizadora quanto o ímpeto inconsequente. De outra forma, caberá àquele que se sente enfadado de sua rotina questionar-se se de fato vale a pena continuar levando a mesma sina, considerando que ”a vida é muito curta para ser pequena”.
As reflexões do autor sobre o campo da liderança levam a uma conclusão entusiasmante: o verdadeiro líder é aquele capaz de inspirar pessoas. Somente quem consegue trazer para seu corpo de auxiliares a importância do trabalho que executam para o real objetivo da obra, também é capaz de inspirar pessoas e modificar-lhes a vida. Daí, a importância de uma consciência coletiva sobre o papel que representam na máquina, bem como o reflexo do bom/mau desempenho de suas atribuições no todo do projeto.
Enfim, a ética entendida como os valores pessoais e coletivos que alimentam e fortalecem o bom convívio social, pode ser avaliada a partir de três perguntas básicas: Quero? Devo? Posso? O ponto de equilíbrio encontrado na resposta a essas perguntas, frente às diversas situações do cotidiano revelará a moral da vida coletiva. Enquanto há indivíduos que somente enxergam o próprio espaço que ocupam neste vasto universo, uma pessoa dotada de princípios éticos e uma moral prática bem estruturada constituir-se-á em uma pessoa capaz de viver uma integridade, ou seja, não se corromper entre os benefícios da ocasião, mas antes pautar-se pelos seus valores e princípios. Nesse ponto de equilíbrio, ela se encontra e respeita o outro em sua alteridade, reconhecendo-o como pessoa e não como estranho.
As pequenas reflexões encontradas nesse livro são de uma densidade tamanha que não se esgotam nas poucas páginas que encerra. Todavia, longe de se perder em extensas reflexões que por fim tornar-se-iam exaustivas, a conclusão a que se chega é o vislumbre de como a obra de cada um é capaz de alimentar a própria vida, sem, contudo sufocar nossa grande obra coletiva e a obra que o outro traz consigo. Afinal, enquanto a decisão de cada um soa como algo individual, as consequências podem trazer repercussões em muitas outras vidas.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:      Qual é a tua obra?
Subtítulo: inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética
Autoria:    Mario Sergio Cortella
Editora:    Vozes
Ano:         2010
Local:       Petrópolis
Edição:     10ª
Gênero:    Filosofia

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O Profeta Jeremias, boca de Deus, boca do Povo: uma introdução à leitura do livro do profeta Jeremias (Carlos Mesters)

profeta jeremias, o - boca de deus, boca do povo          Valendo-se de seu alto conhecimento bíblico, mais uma vez o Frei Carlos Mesters oferece uma chave de leitura para um importante livro da Bíblia: o Profeta Jeremias.
          O profeta Jeremias nasceu em Anatot, por volta do ano 645 a.C. e trabalhou como agricultor até receber o chamado em 627. De sua paixão por Deus e pelo povo, brotava o objetivo principal de sua ação profética: levar o povo de volta à observância da Aliança. O contexto no qual vivia era marcado pela corrupção política, gerada pela trama histórica do reinado de Manasses e também pela corrupção religiosa, uma vez que a religião era usada para legitimar os erros dos líderes religiosos. Em virtude disso, o povo prestava culto aos deuses estrangeiros.
          Assim como Jeremias, outros grupos visavam igualmente a reforma social e religiosa, como: 1) os recabitas, que visavam voltar aos tempos do êxodo, pela observância estrita daqueles costumes; 2) os refugiados, cuja proposta era voltar à observância da Aliança feita com Moisés; 3) os discípulos de Isaías (anawin), que acreditavam ser do meio dos pobres que nasceria um futuro melhor para o povo e cujo principal defensor foi o profeta Sofonias.
          No tempo do rei Josias (640-609), a partir de seu contato com o Livro da Lei (Deuteronômio), iniciou uma série de reformas em todas as esferas da sociedade. Jeremias concordava com o rei, no que dizia respeito à união do povo de Israel e de Judá, observância da Aliança e em ser contra qualquer aliança com o Egito. No entanto, discordava quanto à centralização do culto em Jerusalém. A reforma que Jeremias propunha, dizia que não bastava o culto, mas era necessário restabelecer também o direito e a justiça, de modo que ele visava um processo de conversão do próprio coração.
          Com a morte de Josias e o reinado de Joaquim (609-597) a situação do povo voltou a piorar devido ao cerco de Judá feito por Nabucodonosor em 598. Joaquim usou o culto a Deus para legitimar as próprias injustiças, levando o povo a desacreditar no relacionamento dentro do próprio clã, desanimar as lideranças, esquecer da Aliança e enfrentar um duro período de fome e seca. Simbolizando sua vocação, Jeremias fazia uso de algumas ações simbólicas como não casar, não ir a festas e nem a velórios. Apesar de seu sofrimento constante proveniente da perseguição, rejeição e abandono até mesmo pelos próprios familiares, Jeremias tinha alguns amigos com quem podia contar, como os recabitas, discípulos de Isaías e os “pobres de Javé”(anawin). A fonte de sua coragem vinha de seu relacionamento com Deus, da consciência da missão, dos amigos e da nova forma de encarar a vida e os fatos, à luz da tradição bíblica e dos profetas.
          Durante o reinado de Sedecias (597-586), após a 1ª deportação para a Babilônia, as palavras dos profetas muitas vezes eram contrárias umas às outras no que diz respeito a estarem a favor ou contra Nabucodonosor. A parábola dos dois cestos de figos (4, 1 – 10) ilustrava bem a situação: os figos podres eram os que consideravam a ideologia dominante da monarquia como o período ideal da história do povo de Deus e viam o exílio como um simples “acidente de percurso”; os figos bons eram Jeremias e os grupos que pregavam um “futuro e uma esperança”, os quais acreditavam que o exílio era parte do plano de Deus e muito dizia sobre o futuro do povo. Diante do poder da Babilônia, Jeremias pregava tanto aos que ficaram em Jerusalém quanto aos exilados que se submetessem: “Sirvam ao rei da Babilônia, para que vocês possam viver!”(27, 17). A resistência seria suicídio e sua pregação era fruto de sua visão do exílio como parte dos planos de Deus. Jeremias imaginava uma comunidade do futuro como sendo livre, alegre e servidora, onde a sabedoria seria dom de Deus e sua lei estaria no coração do povo.
          A destruição de Jerusalém por Nabucodonosor em 586, trouxe um período de calamidade para o povo. O Livro das Lamentações de Jeremias (que provavelmente não foi escrito por ele) fala da fome, miséria, terror, destruição, morte e escravidão que se apoderou da cidade: “Eu sou o homem que viu a dor de perto” (Lm 3, 1) e “Vocês todos que passam pela estrada, parem e olhem para ver se, em algum canto, existe uma dor semelhante à minha dor!”(Lm 1, 12). Apesar de todo o sofrimento, o livro conserva um certo raio de esperança: “O amor de Javé não acaba jamais e sua compaixão não tem fim. Pelo contrário, renovam-se cada manhã: como é grande tua fidelidade! Digo a mim mesmo: ‘Javé é minha herança’, por isso nele espero!” (Lm 3, 22-24). Nesse mesmo ano, se deu a 2ª deportação para o exílio. O povo levava consigo a memória da destruição, não tinha líderes, eram em sua maioria pobres e refugiados e ao contrário da primeira, contava com mais grupos que queriam a renovação e a mudança. Nesse período, Jeremias e Godolias reorganizaram-no sem a Monarquia e sem o Templo Real, escolhendo Masfa como centro. A raiva de alguns que eram contrários ocasionou o assassinato de Godolias e, diante disso, todos queriam fugir para o Egito mas Jeremias continuava a pregar a submissão ao rei da Babilônia. No entanto, o povo não aceitou e nesse contexto se deu a morte do profeta.
          Carlos Mesters apresenta a vida e vocação profética de Jeremias, de forma bastante sistematizada em seis capítulos: 1º) A história de sua vocação, do nascimento aos 18 anos (645-627); 2º) A paixão que sustentou-o em sua luta, dos 18 aos 36 aos (627-609); 3º) O sofrimento do profeta, dos 36 aos 48 anos (609-597); 4º) A difícil tarefa de interpretar a história à luz da fé, dos 48 aos 57 anos (597-588); 5º) A denúncia do mal se transforma em anúncio de esperança, dos 57 aos 59 anos (588-586); 6º) Amostra e modelo futuro do povo, dos 58 anos até a morte (587-?). Nesse trajeto, vemos uma figura sensível aos sinais de Deus em sua história e atento a sua presença na caminhada de um povo oprimido e escravizado. Uma bela integração da fé encarnada na vida e de uma vida encarnada na fé.
 
REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:      Profeta Jeremias, boca de Deus, boca do povo, O
Subtítulo: uma introdução à leitura do livro do Profeta Jeremias
Autoria:    Carlos Mesters
Editora:    Paulinas
Ano:         1992
Local:       São Paulo
Gênero:    Espiritualidade | Religião

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Rei Artur (Allan Massie)



Existem diversas histórias sobre a lenda do Rei Artur. Nessa, Allan Massie reproduz a versão narrada pelo sábio e astrólogo medieval Michael Scott, escrita para seu aprendiz e imperador do Sacro Império Romano, Frederico II de Hohenstaufen (1194-1250). Trata-se do segundo romance de Massie em sua trilogia sobre a Idade Média. O autor é famoso por suas diversas obras, contando com vários títulos sobre os imperadores romanos.
Quando Artur era ainda bem pequeno, Merlim, uma espécie de mago que o instruíra, percebeu seu futuro promissor e retirou-o dos braços de sua mãe, a fim de torná-lo um grande cavalheiro. Artur passara a andar errante pelo mundo e sofrera abusos, sendo o mais marcante aquele que o Cara de Pedra lhe infligira. Também passara por experiências positivas, atuando como artista itinerante, onde conheceu seu amigo Cal, que lhe seria fiel por toda a vida. Desde então, sua história passou a ser marcada por contos heroicos e cercados de misticismo que exaltam seus feitos e a natureza de sua força.
O período de realeza de Artur se inicia com o falecimento do rei da Grã-Bretanha, Uther Pendragon. Este afirmara que se tornaria seu sucessor no trono, aquele que conseguisse remover a espada Excalibur de uma pedra. A tarefa fora impossível para os melhores cavalheiros do império e somente Artur conseguira, mesmo sendo acusado de obter auxílio da magia de Merlim. A Grã-Bretanha estava em guerra contra a invasão dos saxões, liderados pelo Rei Lot. Quando ainda era artista, Artur havia tido um filho com a esposa deste, Morgan Le Fay, que nascera deficiente e se chamava Mordred. Merlim era irmão de Morgan e a havia condicionado aos seus interesses quando pequena, cerceando suas liberdades.  Ela jamais havia sido feliz com isso e constantemente sofria desgostos, razão pela qual mandara acorrentá-lo, como forma de vingança. No entanto, para sua surpresa, como Artur era um rei pacífico e diplomático, diante da oferta do rei saxão Ethelbert de que se casasse com sua filha Guinevere, esse aquiesceu e Morgan fora exilada. Era a oportunidade de reconciliação entre os dois povos e um passo para a restauração do Império de Roma. Guinevere não gostava de Cal e fizera Artur expulsá-lo como bode expiatório de um mal que ela cometera, o que causou grande desgosto ao rei e fez com seu amor por ela começasse a se declinar.
A discussão entre dois soldados sobre qual deles era superior inspirou o Rei Artur na criação da Ordem dos Cavaleiros da Távola Redonda, na qual nenhum membro ocuparia posição superior a qualquer outro. Esta consistia num destacamento de soldados regidos segundo os critérios estabelecidos pelo próprio Rei Artur. Os princípios supremos eram o dever e a disciplina. Mesmo não havendo hierarquia entre ambos, dividiam-se em dois graus: 1º) Classe dos cavaleiros solteiros = embora não praticassem a castidade, era-lhes proibido a união legal. Além do mais, não podiam possuir terras e ficariam à serviço do rei; 2º) Classe dos cavaleiros territoriais = formada por ex-cavaleiros solteiros, possuíam castelos e terras e deviam garantir a paz da região e de seu povo, além de cobrarem impostos e fornecerem soldados em tempos de guerra. O mais famoso dos cavaleiros fora Lancelot que, mais tarde, fugiria com a esposa de Artur, lançando seu reinado em uma grave crise. Além do mais, a partida de diversos cavaleiros para uma busca egoísta que diziam se fundar na lenda do Santo Graal (o cálice que Cristo usara na última ceia e que, acreditava-se, daria a imortalidade a quem o possuísse), provocou a dissolução da Ordem da Távola Redonda. Era o início da tragédia de uma época áurea que o rei construíra.
A notícia da união entre Artur e o imperador do oriente provocou ciúmes no papa. Nesse contexto, o pontífice usou o filho que Artur tivera com Morgan, Mordred, para destruí-lo. E assim Artur seguiu em batalha junto com seus companheiros Gawaine, Agravaine e Parsifal, até que estes foram mortos e, finalmente, o rei.
É interessante notar nessa obra a mescla entre o que é esotérico e o que fatual. O autor consegue exprimir o contexto histórico no qual se dá a trama sem torná-la exaustiva com a citação de datas e lugares diversos. Na história do personagem real se infiltram também os contos lendários da visão de uma época marcada pelo misticismo de uma visão cristã ainda não lapidada pelos ditames da razão. A narrativa torna-se ainda mais rica por retratar alguns traços característicos da sociedade inglesa da Idade Média, como seus códigos de honra, tabus sexuais, ideias religiosas consideradas heréticas, bem como a suntuosidade das batalhas. Allan Massie retrata Artur como uma figura cativante, humanista, sábia, preocupada com os interesses de seu povo e que conservara a honra e a dignidade mesmo diante da morte certa e sua iminente derrota na última batalha contra Mordred. Razão essa porque o todo de sua vida o consagrou com uma lenda venerada em vários povos.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:   Rei Artur
Autoria: Alan Massie
Editora: PocketOuro
Ano:      2008
Local:    Rio de Janeiro
Série:    Eterna Roma - Vol. II
Gênero: Épico

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Hotel Brasil (Frei Betto)

            Romance de estreia de Frei Betto no gênero literatura policial a trama desse livro vai muito além da simples ficção para imergir profundamente na gama de problemas sociais que afetam o Rio de Janeiro, servindo também como uma amostra de todo o Brasil. Em virtude disso, apesar de ter sido escrito há quase duas décadas, trata-se de uma história completamente atual.
            Localizado na região carioca da Lapa, o Hotel Brasil, administrado por Dona Dinó, era uma moradia de baixo custo, cujos moradores compunham um perfil dos mais diversos. Certo dia, os habitantes são surpreendidos por um crime macabro: Marçal Joviano de Souza fora encontrado decapitado e com os olhos arrancados. De seu paradeiro, sabia-se somente que era envolvido em assuntos sobre pedras preciosas que trazia de Minas Gerais. Levado à polícia, o caso estava sob a investigação do delegado Olinto Del Bosco.
            Del Bosco convocara todos os moradores do hotel para colher seus depoimentos sobre o ocorrido. Nessas oitivas, cada morador é apresentado ao leitor: Cândido, professor e atuante em um movimento de ajuda a menores infratores; Jorge Maldonado, faxineiro do hotel; Marcelo Braga, jornalista inescrupuloso; Rosaura Dorotéia dos Santos, empregada doméstica fascinada em tornar-se atriz de telenovela; Rui Pacheco, assessor de um deputado na Assembleia Legislativa; Madame Laurência, cafetina; e Diamante Negro, transformista. O mais intrigante no caso que fora noticiado pela impressa como do “degolador da Lapa” era que o crime havia sido cometido sem sinais de arrombamento e sem que nenhum dos pertences da vítima fosse subtraído.
            Paralelamente às investigações, o livro também foca na vida do personagem Cândido e seu trabalho com os menores infratores. Ele trabalhava como redator em uma editora e conhecera a antropóloga Mônica Kundali. No decorrer da história um romance seria nutrido e maiores revelações sobre o passado angustiante da antropóloga viriam à tona através de suas cartas que nunca eram enviadas. Cândido também militava na defesa dos menores infratores. Num episódio em que alguns menores fugiram de uma casa de internação à custa do assassinato de alguns funcionários, Cândido vivencia seu lado paternalista com a garota Beatriz (Bia), uma adolescente meiga cuja inocência fora deturpada pela dura vida nas ruas. Ela era alvo de policiais corruptos e criminosos perigosos e Cândido não pouparia esforços para recuperá-la do mundo do crime, mesmo sabendo que seu envolvimento com a menor poderia sujar sua imagem. Para alguém que figurava como suspeito de um crime ocorrido no local onde morava, proteger menores procurados pela polícia era ainda mais incriminador.
            Hotel Brasil é uma história policial que não se limita ao suspense das investigações. Seu objetivo vai muito além, visando tecer uma crítica do contexto social à medida que o pinta nos traços mais verídicos. O episódio em que a polícia usa de tortura para que um dos interrogados confesse a autoria dos crimes é, na verdade, uma marca que o autor quis deixar de sua própria biografia, para que jamais seja esquecida a covardia dos militares durante a ditadura militar. Quem conhece um pouco da vida e obra de Frei Betto, sabe bem sobre a importância do destaque que o ele deixa para os flashes desse período que ele padeceu. Enfim, quando a identidade do(a) verdadeiro(a) assassino é finalmente revelada, tem-se também a constatação de que as aparências de fato enganam e que por mais inocente que possa parecer, há pessoas que cujas consciências são obscuras a ponto de revelarem-se como verdadeiros assassinos em série autores de crimes perfeitos.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:   Hotel Brasil
Autoria: Frei Betto
Editora: Ática
Ano:      1999
Local:    São Paulo
Gênero: Drama | Policial