quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Transforme seu medo: impulsos espirituais (Anselm Grün)


            Na existência humana é comum lidar com situações as quais causam espanto e até mesmo temor, fazendo com que a pessoa se retraia diante da vida ou se feche em determinadas zonas de conforto e segurança. Muitas vezes, o objeto de que se tem medo pode ser facilmente nomeado mas, em praticamente todas as situações, as raízes do medo estão em forças internas as quais não são facilmente percebidas de imediato. Esse pequeno livro de Anselm Grün dedica-se à reflexão sobre diversas situações amedrontadoras, comuns à maioria das pessoas, iluminando-as porém com um olhar espiritual cristão.
            O medo é algo inerente à existência humana. Diante dele, pode-se viver oprimido ou aproveitar a ocasião para aprender um pouco mais sobre o próprio existir. A primeira atitude é assumir os medos que se tem e encará-los como uma oportunidade de descobrir a verdade da própria alma. Trata-se, portanto, de descobrir para onde o medo me quer levar e como ele me faz reagir. Visto dessa ótica, o medo nos abre a uma dimensão a qual nunca conheceríamos caso não o sentíssemos.
            Contudo, Anselm Grün propõe um novo reforço para aprendermos a lidar com essa temática. Após abordagens sobre diversos pontos de vista diferentes (medo do desconhecido, medo dos relacionamentos, medo do futuro, medo de Deus, medo de si mesmo, medo da passagem do tempo, medo de doenças e tragédias, etc.) ou autor traz exemplos vivenciados por Jesus Cristo em sua permanência entre o povo judeu. Jesus não baniu o medo simplesmente, mas ensinava seus interlocutores a vivenciá-lo na esfera da confiança em algo maior. Poucas vezes Jesus afugentou o medo daqueles que encontrava, mas sempre os ensinava a serem maiores do que seus próprios temores. Desta forma, queria que as pessoas se convertessem em seres humanos corajosos e capazes de lidarem com as constantes trevas que a vida ocasiona. Somente adquirindo essa fortaleza interior, o ser humano podia reconhecer o Deus que nele habitava e que lhe garantia uma existência segura e tranquila. Consequentemente, pelo fato de aguçar a vigilância e a percepção, o medo torna-se ocasião favorável para perceber a presença divina, já que expõe o amedrontado às suas maiores fragilidades que ameaçam sua vida e sua felicidade.
            Dentre os medos daquilo que é desconhecido, a morte é o maior. Ele faz questionar toda a nossa vida e o modo como estamos vivendo, bem como nos abre à reflexão de qual o sentido em vivê-la se um dia tudo se acabará, o que deixaremos para quem e etc. Para Grün, a melhor maneira de combater esse medo é vivendo-o com um sentimento de gratidão e desprendimento diante da vida. Somente assim a vida pode transcorrer livremente, não como uma prisão agradável mesmo que necessária e sim como abertura a um horizonte de transformação e significado maior.
            Transforme seu medo é um livro que, mais do que lido, deve ser rezado e refletido. Talvez os não crentes ou não adeptos à fé cristã possam saltar algumas partes aproveitando somente daquelas que dizem respeito às suas questões mais imediatas. Mesmo assim, sua mensagem não se perde e é útil a todos. Trata-se de uma obra que extravasa os limites puramente literários e alcança toda sua eficácia em um instrumento terapêutico e sintetizador.

REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:         Transforme seu Medo
Subtítulo:    impulsos espirituais
Autoria:       Anselm Grün
Editora:       Vozes
Ano:             2008
Local:           Petrópolis
Gênero:       Espiritualidade

domingo, 18 de janeiro de 2015

12 Anos de Escravidão (Solomon Northup)



Esse é um livro de memórias reais em que o autor relata a experiência trágica que o converteu de um homem livre em um escravo por doze anos, na metade do século XIX. Foi o texto que inspirou a adaptação para o cinema lançada em 2014, vencedora de 3 Oscars.
            Solomon Northup era um homem negro que levava sua vida normalmente junto à mulher e os filhos em Saratoga Springs (Nova Iorque). Dentre seus talentos estava o de ser um excelente violinista. Certo dia, deparou-se com uma dupla de homens que lhe ofereceram uma oportunidade única e imperdível de trabalho. Dividido entre a comunicação com a família e a impossibilidade de perder aquela oferta, Solomon decide partir junto com os homens, ainda mais porque os homens providenciaram toda a documentação que lhe assegurava a condição de homem livre. Tragicamente, tratava-se de uma farsa, e os documentos falsos acabaram por torná-lo a mais nova vítima do regime escravista reinante àquela época nos Estados Unidos.
            Solomon foi embarcado a bordo de um navio com outros negros – homens, mulheres e crianças – na mesma condição. Era o início de um pesadelo que minava todos os seus sonhos de gozar os benefícios de uma vida livre. Qualquer tentativa de provar sua liberdade era logo punida com açoites e castigos atrozes, tornando a submissão um alívio menos penoso, embora não mais aceitável. Logo, logo Solomon entenderia que, na condição de negro escravo, não lhe restava qualquer palavra senão àquelas suficientes ao cumprimento da vontade de seu senhor.
            Durante sua escravidão nas fazendas de Bayou Boeuf, Solomon foi vendido a vários senhores. Em certo momento foi apelidado de Platt, o que tornou seu verdadeiro nome desconhecido naquela sociedade escravocrata. Suas habilidades como músico, a disciplina de sua conduta e produtividade no desempenho dos trabalhos tornavam-no um escravo de valor considerável. Seus relatos reconhecem o Sr. William Ford como tendo sido um patrão bom. Contudo, Solomon teve atritos com Tibeats, que quase o levaram a ser castigado até a morte. Mas foi nas fazendas de Edwin Epps que Solomon passou a maior parte dos seus anos como escravo, assim como as mais terríveis experiências.
            As terras de Epps ficavam em Marksville (Louisiana), mais precisamente na Paróquia de Avoyelles. A população negra era submetida a um tratamento semelhante em todas as fazendas escravistas dos EUA. Cada escravo possuía como bens a roupa do corpo, geralmente feita de algodão cru, uma cabaça e uma saca de algodão que eram também seus utensílios nas lavouras de algodão e cana-de-açúcar. Aqueles que faziam algum trabalho extra ou que se destacavam de alguma forma podiam receber roupas, alguns adornos (para as mulheres), algum outro objeto e até mesmo alguns trocados. Seu alimento era basicamente uma ração feita de milho triturado e toucinho, sendo que as condições deste nem sempre eram apropriadas ao consumo. Apesar de não ser uma prática comum, não havia restrição de que os escravos se casassem. Caso algum escravo necessitasse visitar parentes em outra fazenda próxima, era-lhe concedido um salvo-conduto. Desse modo, ainda que fossem pegos no caminho por algum feitor (funcionários extremamente violentos, contratados pelos senhores, responsáveis por punir escravos fugitivos), não lhes caberia nenhum castigo. Os escravos trabalhavam forçadamente nas lavouras o dia inteiro, fizesse sol ou chuva. Aqueles que não atingissem uma produtividade mínima eram castigados severamente ao fim do dia, indistintamente se homens ou mulheres. O único dia em que era-lhes concedido descanso era no Natal, quando festejavam e dançavam alegremente.
            Um negro feito escravo dificilmente retomaria sua liberdade novamente. Contudo, Solomon usou sua perspicácia para alcançar seu objetivo. Em uma primeira tentativa de enviar uma carta aos seus conhecidos, o mensageiro o traiu e, por pouco escapou da ira de Epps. Na segunda, um carpinteiro dotado de ideias antiescravistas foi fundamental na libertação de Solomon em 1853. Era Bass, que topou arriscar a própria segurança em nome da liberdade daquele cativo duramente injustiçado.
            A narrativa do autor possui um estilo essencialmente descritivo dos fatos, deixando que o próprio leitor absorva e reprove os abusos cometidos pelos senhores de escravos. Os relatos são comoventes e dramáticos, principalmente aqueles que narram os castigos aplicados aos negros, sempre injustificados por tamanha covardia e violência, de forma que, quando as feridas não matavam o escravo, imprimiam em sua pele cicatrizes e sequelas terríveis. Trata-se de uma obra bastante atual para que os temas do racismo e da discriminação racial sejam novamente colocados em debate, a fim de que tais atrocidades jamais venham a ser cometidas novamente.


REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:        12 Anos de Escravidão
Autoria:      Solomon Northup
Editora:      Penguin: Companhia das Letras
Ano:           2014
Local:         São Paulo
Gênero:      Escravidão | Autobiografia

Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 2013:


quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Super-herois e a Filosofia (William Irwin)




            Dotados de super-poderes especiais, trajados em collants coloridos e com designs modernos, imbuídos de atitudes nobres e altruístas, os super-heróis são ídolos mundialmente famosos e inspiradores do agir ético em uma legião de fãs. Contudo, uma abordagem filosófica desses seres irá revelar muitas surpresas, à medida que analisa traços que talvez fiquem em segundo plano, concentrados que estamos em vê-los em atuações espetaculares. É esse o objetivo desse livro magnífico, que reúne artigos de professores renomados, mas também amantes das histórias em quadrinhos que retratam os épicos super-heróis.
            Os textos abordam os personagens de sucesso da Marvel e DC Comics. Os temas giram em torno do dever moral, o mundo existencial, o agir ético e o horizonte de significado dos super-heróis. Portanto, cabe um pequeno aperitivo das questões mais significativas pelas quais os autores tecem suas análises.
            Um dos maiores ícones do heroísmo nos quadrinhos, a figura do Super-homem tem uma natureza paradoxal: ao mesmo tempo em que exercita seu caráter altruísta, também alimenta sua necessidade de pertença à raça humana. É a melhor expressão do ser humano plenamente realizado. Dessa forma, é colocada uma questão que perpassa a conduta de todos os super-heróis: o agir moral está diretamente atrelado ao seu ser humano. Eles poderiam escolher viverem como pessoas normais, mesmo possuindo poderes que os distinguem das demais. Contudo, são animados por um dever moral de fazer o bem. Concomitantemente, quanto maiores os poderes, maiores as chances de poder ajudar e consequentemente de correr riscos. Recordemos aqui o que disse o tio de Peter Parker (Homem-Aranha): “Um grande poder traz consigo uma grande responsabilidade”. A maior virtude desse heroísmo é a mensagem moral da importância do autosacrifício, autodisciplina e dedicação a uma causa nobre que direciona o agir ético na tradição filosófica.
Os super-heróis exercem o papel de vigilantes. Contrariando aquilo que falou o filósofo John Locke, eles são cidadãos especiais que promovem a justiça pelas próprias mãos. Assim, a violência é legitimada, desde que seja para coibir as ações dos infratores. Deste modo, são como policiais especiais a serviço dos governos. Contudo, quando tais governos não concordam com o agir dos super-heróis, eles passam a serem inimigos do Estado, agindo de maneira ilegal, irresponsável e violenta. Trata-se de uma polêmica à parte que reflete sobre até que ponto a conduta em prol do bem comum é permissível quando necessariamente deve infringir certas leis. É o que acontece nas edições de Watchmen e Batman: o cavaleiro das trevas.
Curiosamente, nas HQs dos super-heróis a religiosidade não é um tema presente. Exceção para o Demolidor, em que a história deixa claras as raízes católicas dos pais de Matt Murdock. Por outro lado, honra e glória são virtudes constantes. A trama do Quarteto Fantástico e sua missão de livrar o planeta Terra do apetite voraz de Galactus abordam um tema importante: o sacrifício da vida de um só individuo justificaria o salvamento de milhares de outros? A conduta dos heróis sempre irá privilegiar a salvação de todos os envolvidos, buscando-se a melhor alternativa para que o mal seja dissipado sem nenhuma vítima.
As HQs dos X-men e, especialmente a franquia de filmes lançados pós-11 de setembro, deu também à mulher o caráter de heroína, um papel que vinha sendo atribuído somente aos homens. Dos personagens da Marvel, destacam-se Tempestade (a melhor expressão da figura heroína), Mística (símbolo da anti-heroína) e Jinn Gray (marca da heroína com menores poderes, contudo maior protagonismo no que diz respeito à entrega total pela causa). Os super-heróis inspiram a busca por um caminho de perfeccionismo moral. Não obstante, longe de seguir-lhes o exemplo como se fosse uma cópia, tal perfeccionismo indica que, inspirado em suas ações, deve-se buscar atingir o melhor que cada um pode chegar. É o que acontece com Bárbara Gordon, a Batgirl.
Batman é o mais solitário dos super-heróis. A plena dedicação a sua missão, proveniente do trauma gerado pelo assassinato de seus pais, impede que ele se revele e se confie a muitas pessoas. E abertura é um fator fundamental para que ocorra uma relação de amizade. Por outro lado, os membros da Liga da Justiça são analisados como componentes de uma família perfeita, pelo comprometimento um com o outro, ainda que existam certos contratempos.
A história de Hulk é um prato cheio para a questão da identidade existencial. Afinal, Bruce Banner e o Incrível Hulk são a mesma pessoa? Quais traços permitem a continuidade dessa identidade, mesmo que sejam criaturas totalmente distintas? Que conclusão pode ser tirada disso?
Outro tema relevante trabalhado pelas histórias em quadrinhos, diz respeito aos multi-universos. Isso é notável principalmente nos episódios em que determinado personagem tenta voltar no tempo para modificar a história. Metafisicamente, é possível voltar ao passado vivendo no presente e assim modificar o futuro? Não seriam duas dimensões diferentes de um mesmo tempo atual? Esse debate é um dos mais controversos da história da filosofia.
Pelas rápidas considerações destacadas, tem-se uma noção da riqueza desse material para aqueles que desejam ver os super-heróis para além da adrenalina característica de suas representações, seja nos quadrinhos, desenhos animados ou no cinema. É um livro completamente abrangente, capaz de ressaltar o efeito humanizante que cada personagem transmite. Dessa forma, é possível também compreender o porquê tais personagens exercem um poder místico em tantas pessoas, comparável somente ao efeito catatônico que as religiões produzem em seus fiéis. Seriam os super-heróis os deuses que a cultura criou como quimeras mantenedoras de uma sociedade mais justa, equilibrada e feliz? 

 REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:        Super-herois e a Filosofia
Subtítulo:   verdade, justiça e o caminho socrático
Autoria:      William Irwin (org.)
Editora:      Madras
Ano:           2009
Local:         São Paulo
Gênero:      Super-herois | Filosofia