sábado, 20 de abril de 2013

O Encontro Marcado (Fernando Sabino)


“De tudo, ficaram três coisas: 
a certeza de que ele estava sempre começando, 
a certeza de que era preciso continuar 
e a certeza de que seria interrompido antes de terminar.
Fazer da interrupção um caminho novo. 
Fazer da queda um passo de dança,
do medo uma escada, do sono uma ponte,
da procura um encontro” (p. 145)

         A história contada em O Encontro Marcado toca diretamente no desenvolvimento psíquico, afetivo e existencial do ser humano, visto da potência criativa que fornece combustível para seus sonhos e confrontando com as circunstâncias factuais de sua vida. Por isso, a narrativa acaba por revelar o tênue véu que separa a vida idealizada, do cotidiano presentificado a cada amanhecer.
            Eduardo Marciano, filho do Senhor Marciano e Dona Estefânia, é uma criança agitada pela vivacidade de suas energias, na cidade de Belo Horizonte, numa época em que a cidade ainda moldava sua importância como capital no contexto brasileiro. Como qualquer pessoa de sua idade, Eduardo atravessa as rebeldias do desenvolvimento sexual. Apaixonara-se por Lêda, uma garota que se destacava pela inteligência e suas boas notas, e isso o fizera estudar mais e mais para impressioná-la. Tal esforço desenvolveria em Eduardo o talento para a escrita, o que lhe renderia um prêmio em um concurso de contos no Rio de Janeiro. Aliás, esse não seria o único prêmio de sua vida, mas também uma medalha como campeão de natação.
            Eduardo sempre cultivara a amizade e uma perda o marcara profundamente. Foi quando seu amigo Jadir suicidou com um tiro no peito, um dia após Eduardo ter conversado com ele sobre suicídio. No entanto, a fruição do saber intelectual, principalmente pela leitura dos grandes clássicos da literatura, aliada a uma atitude revolucionária em prol da ideologia dos oprimidos em plena II Guerra Mundial, aproximaria ainda mais Eduardo de seus amigos Mauro e Eugênio. Desta forma, os três marcam um encontro para daqui a quinze anos, no mesmo local onde se formaram no colégio a fim de confrontarem as experiências vividas nesse tempo.
            As idas e vindas de Eduardo o conduziram a um encontro inesperado com Antonieta, a filha de um importante ministro, no Rio de Janeiro. Daí surgiria uma paixão que levaria ambos a selarem sua união com o casamento. No entanto, passados os tempos de beleza e encantamento, tal relação acaba por evidenciar o crescimento pessoal de Antonieta e a estagnação comportamental de Eduardo, um sujeito sem referências que lhe garantissem segurança e estabilidade emocional na vida. Além do mais, um incidente ocorrido durante uma de suas idas ao Rio de Janeiro o abalaria profundamente: uma mulher caíra da janela de um hotel minutos depois de Eduardo dar entrada no mesmo e mudar de hospedagem logo após a tragédia. Eduardo tornara-se o principal suspeito de um crime sem provas confiáveis nem motivos explícitos. Seria mais um fardo para uma vida já sangrada por diversas perdas: sua galinha Eduarda durante a infância, seu amigo Jadir, seu pai Marciano, seu amigo de natação Rodrigo, seu filho ainda em formação no ventre de Antonieta.
            A trajetória da vida de Eduardo enfatiza de forma romanceada as inconstâncias de uma vida sem objetivos claros nem referenciais seguros. É a tradução perfeita de alguém à procura de sentido para sua existência, mas perdido no emaranhado de si mesmo. No entanto, o que mais encanta na narrativa de O Encontro Marcado é a viagem que o espírito humano é capaz de empreender na busca e compreensão de si. Uma jornada de incertezas e repleta de descobertas desafiadoras.

SABINO, Fernando.  O Encontro Marcado. Rio de Janeiro: Record, 1995. 63ª ed.. 288 pgs.

sábado, 6 de abril de 2013

Auto da Compadecida (Ariano Suassuna)



         Totalmente enraizada na cultura brasileira, a obra Auto da Compadecida (1955) surge da tradição nordestina. Como é esclarecida por seu próprio autor, a peça de teatro não foi completamente inventada em sua mente, mas surgiu a partir dos poemas e romances de literatura de cordel. Dentre esses, os que mais influenciaram foram O Dinheiro (Leandro Gomes de Barros), História do cavalo que defecava dinheiro (anônimo) e O Castigo da Soberba (anônimo). Em cada ato da peça escrita por Suassuna, os traços e paralelos com esses textos são bastante visíveis.

        Na pequena cidade nordestina de Taperoá, viviam dois amigos: João Grilo e Chicó. O primeiro, esperto e inteligente, usava de sua astúcia para livra-se de situações embaraçosas ou se beneficiar delas. O segundo, medroso e indeciso, por vezes atrapalhava os planos do amigo, fazendo com que fossem desmascarados. Assim viviam a vida tranquilamente no povoado, até que um fato inusitado mudara o rumo de tudo.

        Os patrões de João Grilo, um padeiro e sua mulher, haviam perdido um cachorro que estava doente e muito estimavam. Diante de tal afeto, João Grilo e o amigo Chicó procuram o padre, para que faça o enterro do animal com todas as honras das exéquias. Em um primeiro momento assustados com tal horrendo sacrilégio, o padre e o sacristão somente se deixam convencer quando João Grilo os engana dizendo ser o animal de um habitante de renome em Taperoá. Este, Antonio Moraes, procura o padre para que benza seu filho doente e fica alarmado quando o clérigo se dirige a ele como se seu filho fosse um animal. Mesmo a contragosto, o padre autoriza o sacristão a fazer o enterro em latim. No entanto, a situação se agrava ao chegar aos ouvidos do bispo, bem como os maus tratos que Antonio Moraes recebera.

        O envolvimento do bispo na história faz João Grilo recorrer a um novo estratagema: a afirmação de que o cachorro deixara um testamento concedendo alguns valores aos ministros da igreja. Bispo, padre e sacristão aceitam revisar o cometimento do pecado mas um novo personagem muda o curso da história. O cangaceiro Severino e seu capanga chegam à cidade e matam os religiosos, o padeiro e sua mulher. Ao chegar a vez de João Grilo e Chicó, mais uma vez a astúcia de João livra o amigo, ao preço de sua própria vida, depois de morrerem o cangaceiro e seu comparsa.

        No terceiro ato dá-se o julgamento dos réus diante de Manuel (vulgo Jesus Cristo) e do Encourado (o demônio). As acusações aos religiosos de sodomia, interesses contrários ao evangelho e mau cumprimento dos ritos eram graves. Ao padeiro pesava a queixa de explorar os funcionários e a sua mulher, a acusação de adultério (por sinal, cometido com Chicó). Aos cangaceiros, o fato de serem assassinos. Por fim, a João Grilo vinha a acusação de enganador e mentiroso. Os pecados cometidos eram graves e até mesmo Manuel via a dificuldade na salvação. Porém, o apelo a Virgem Maria, a Compadecida, transformaria toda a história, por incrível que pareça, graças a mais uma das artimanhas de João Grilo.

        Uma das características mais marcantes dessa obra é seu acentuado tom cômico e humorístico. A reprodução quase literal das falas dos personagens com o típico sotaque regionalista ajuda a ilustrar divertidamente a cena no imaginário do leitor. Um grande sucesso não só na literatura como também em suas adaptações para os palcos e para o cinema.


SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 35ª ed.. Rio de Janeiro: Agir, 2005. 188 pgs.


Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 2000: