sábado, 7 de setembro de 2013

Caim (José Saramago)


“A história dos homens é a história 
dos seus desentendimentos com deus,
nem ele nos entende a nós, 
nem nós o entendemos a ele” (p. 88)

            Com seu estilo narrativo característico, José Saramago mais uma vez traduz em suas próprias palavras uma história bíblica, desta vez, tendo um relato do Gênesis como base. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo, tivemos como protagonista o próprio Jesus Cristo, sendo narrado criticamente sobre o ponto de vista do autor português. Em Caim, Saramago aproveita as contradições do relato bíblico para confrontar diretamente a visão de que Deus trata os homens com misericórdia e amor.
            Em uma humanidade recém-criada pelo Todo-poderoso, Abel e Caim são os filhos dos precursores da vida humana, Adão e Eva. Expulsos do paradisíaco Jardim do Éden, Adão e Eva são obrigados a enfrentar seus próprios limites físicos e biológicos na necessidade de sobrevivência, uma vez que seu próprio criador havia posto um arcanjo às portas do paraíso, a fim de impedir-lhes a entrada, mesmo para saciar a fome. Seus dois filhos, embora queridos igualmente pelos pais, não agradaram de forma igual ao Senhor. Enquanto Abel pastoreava ovelhas, Caim cultivava o solo e, em agradecimento, os dois apresentaram os frutos de seu trabalho a Deus. No entanto, a oferta de Abel tornara-se mais agradável ao Senhor do que a de Caim. Isto provocou a fúria de Caim que resolveu vingar-se do irmão assassinando-o e mascarando seu crime com a notícia de que ele havia sido morto por um animal selvagem. Contudo, o próprio criador encontra Caim, momentos após consumar sua vingança contra Abel. Desapontado, condena Caim a andar errante pelo mundo, sem rumo certo aonde ir, nem lugar para repousar. A reação de Caim é uma discussão travada diretamente com Deus, acusando-o de que era ele o maior responsável pela morte do irmão, uma vez que se tivesse aparecido antes não o teria permitido levar a cabo sua vingança.
            Se por um lado a notícia da morte do irmão pudesse ser facilmente encoberta pela mentira, por outro o fantasma da culpa estava impregnado a incomodar a consciência de Caim. Mas isso não o impede de seguir sua trajetória. Desta forma, Caim torna-se um peregrino errante pelo mundo, a satisfazer seus desejos sexuais com a rainha Lilith e a vagar sem rumo. Seu curso o levaria a momentos bíblicos importantes como a travessia do mar Vermelho feita pelos israelitas liderados por Moisés; o quase sacrifício do filho Isaac por Abraão, impedido por Caim; a destruição de Sodoma e Gomorra por uma chuva de enxofre; a construção da arca por Noé, quando Deus enviara o dilúvio, cansado das atrocidades humanas. Em todos esses episódios, Caim surge como a figura questionadora, colocando em xeque o agir de Deus, como se este fosse o maior traidor da humanidade.
            A obra de Saramago deixa evidente seu ateísmo e sua discordância frente à imagem de que Deus ama a humanidade. Como em O Evangelho segundo Jesus Cristo, o massacre de crianças inocentes permitido pelo Senhor no episódio da destruição de Sodoma e Gomorra, torna-se o principal motivo para a afirmação de que Deus é cruel e sádico. Diante disso, fica para o leitor o convite à reflexão sobre como é colocada a questão diante de seus próprios valores religiosos. Afinal, Caim aborda de forma clara a questão do agir de Deus e o limite de sua interferência no livre-arbítrio do homem, como sendo a vontade deste o ponto no qual o querer divino não se propõe intervir.

SARAMAGO, José. Caim: romance. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 174 pgs.

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