nem ele nos entende a
nós,
nem nós o entendemos a ele” (p. 88)
nem nós o entendemos a ele” (p. 88)
Com seu estilo narrativo
característico, José Saramago mais uma vez traduz em suas próprias palavras uma
história bíblica, desta vez, tendo um relato do Gênesis como base. Em O Evangelho segundo Jesus Cristo,
tivemos como protagonista o próprio Jesus Cristo, sendo narrado criticamente
sobre o ponto de vista do autor português. Em Caim, Saramago aproveita as contradições do relato bíblico para
confrontar diretamente a visão de que Deus trata os homens com misericórdia e
amor.
Em uma humanidade recém-criada pelo
Todo-poderoso, Abel e Caim são os filhos dos precursores da vida humana, Adão e
Eva. Expulsos do paradisíaco Jardim do Éden, Adão e Eva são obrigados a
enfrentar seus próprios limites físicos e biológicos na necessidade de
sobrevivência, uma vez que seu próprio criador havia posto um arcanjo às portas
do paraíso, a fim de impedir-lhes a entrada, mesmo para saciar a fome. Seus
dois filhos, embora queridos igualmente pelos pais, não agradaram de forma
igual ao Senhor. Enquanto Abel pastoreava ovelhas, Caim cultivava o solo e, em
agradecimento, os dois apresentaram os frutos de seu trabalho a Deus. No
entanto, a oferta de Abel tornara-se mais agradável ao Senhor do que a de Caim.
Isto provocou a fúria de Caim que resolveu vingar-se do irmão assassinando-o e
mascarando seu crime com a notícia de que ele havia sido morto por um animal
selvagem. Contudo, o próprio criador encontra Caim, momentos após consumar sua
vingança contra Abel. Desapontado, condena Caim a andar errante pelo mundo, sem
rumo certo aonde ir, nem lugar para repousar. A reação de Caim é uma discussão
travada diretamente com Deus, acusando-o de que era ele o maior responsável
pela morte do irmão, uma vez que se tivesse aparecido antes não o teria
permitido levar a cabo sua vingança.
Se por um lado a notícia da morte do
irmão pudesse ser facilmente encoberta pela mentira, por outro o fantasma da
culpa estava impregnado a incomodar a consciência de Caim. Mas isso não o
impede de seguir sua trajetória. Desta forma, Caim torna-se um peregrino
errante pelo mundo, a satisfazer seus desejos sexuais com a rainha Lilith e a
vagar sem rumo. Seu curso o levaria a momentos bíblicos importantes como a
travessia do mar Vermelho feita pelos israelitas liderados por Moisés; o quase
sacrifício do filho Isaac por Abraão, impedido por Caim; a destruição de Sodoma
e Gomorra por uma chuva de enxofre; a construção da arca por Noé, quando Deus
enviara o dilúvio, cansado das atrocidades humanas. Em todos esses episódios,
Caim surge como a figura questionadora, colocando em xeque o agir de Deus, como
se este fosse o maior traidor da humanidade.
A obra de Saramago deixa evidente
seu ateísmo e sua discordância frente à imagem de que Deus ama a humanidade.
Como em O Evangelho segundo Jesus Cristo,
o massacre de crianças inocentes permitido pelo Senhor no episódio da
destruição de Sodoma e Gomorra, torna-se o principal motivo para a afirmação de
que Deus é cruel e sádico. Diante disso, fica para o leitor o convite à
reflexão sobre como é colocada a questão diante de seus próprios valores
religiosos. Afinal, Caim aborda de
forma clara a questão do agir de Deus e o limite de sua interferência no
livre-arbítrio do homem, como sendo a vontade deste o ponto no qual o querer
divino não se propõe intervir.
SARAMAGO, José. Caim: romance. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009. 174 pgs.
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