As vivências do mundo contemporâneo
fazem com que as pessoas cumpram diariamente certo ritual predeterminado:
acordar, fazer o desjejum, ir ao trabalho/escola/lazer, alimentar-se, fazer a
higiene pessoal e dormir. Com isso, não é de se admirar quantas se queixam da
falta de tempo em suas vidas, não por ele ser algo que lhes falta e sim por ser
insuficiente diante do emaranhado de programações, fazendo com que seja um
sacrifício ter que renunciar ou encurtar a atenção dispensada a algo, em função
de algo outro. Além do mais, as exigências da vida moderna requerem que tudo
seja concebido como fatos isolados, com início, meio e fim determinados, bem
como locais adequados. Na contrapartida dessa tendência, o desejo de ser capaz
de um emaranhado de coisas faz com que aconteça uma mesclagem das atitudes:
para se dar conta da leitura de um livro, deve-se aproveitar a viagem de volta
para casa dentro do ônibus e, como se não bastasse o ruído do motor e do
vozerio das pessoas, deve-se suportar a música pelos fones de ouvido, pois isso
também é um prazer. Apenas um exemplo da mesclagem hodierna.
Sem a pretensão de tecer um ponto de
vista crítico das tendências modernas, Roger-Pol Droit busca salientar que a
filosofia enquanto atitude reflexiva, racional ou mesmo fruitiva, é algo mais
presente no cotidiano do que se imagina. Em meio às atividades cotidianas, experimentamos
diversas ocasiões que podem ser momentos privilegiados de uma intensa
experiência filosófica. Alguns fatos simples e corriqueiros que jamais seriam
encontrados em tratados extensos e complicadíssimos de filosofia mostram-se
como momentos de especial importância para que a essência do numinoso ou uma
centelha do que é a coisa-em-si se descortinem desveladamente diante de nosso
ser. Perante essas inúmeras experiências, o autor descreve cento e uma, como
uma forma simbólica de apontar que são infinitas: ver a própria imagem
refletida no espelho, observar a poeira contra a luz do sol, acompanhar uma
formiga carregando uma folha, tentar não pensar em nada, imaginar-se dentro de
um labirinto, contemplar o próprio corpo em um caixão, visualizar a si mesmo
daqui a dez ou vinte anos, aturar os tagarelas, gastar tempo em uma biblioteca,
etc.. Todos esses são exemplos de quão rica a experiência cotidiana é para nos
fornecer material existencial para nossa reflexão.
Mesmo que não seja consciente disso,
a atitude reflexiva é uma faculdade inata do ser humano, mais do que a
racional. Se observarmos bem nosso dia, veremos que a frequência de
pensamentos, imagens e associações sem lógica alguma e carregadas de conteúdo
imaginário e fantasioso é mais constante do que a complexa construção de
pensamentos que possuem nexo ou são factualmente realizáveis. Daí vem a
constatação de que a natureza humana é a unidade daquilo que sistematicamente
se define como sendo espiritual, biológico, racional, emocional, psíquico, etc..
Dessa forma, filosofar é a ação mais praticada no dia-a-dia.
A obra de Roger-Pol Droit busca
fornecer a centelha inicial capaz de acender o espírito para a atitude
reflexiva nas situações mais mórbidas e efêmeras da vida. Por apresentar a
filosofia de uma maneira leve e descontraída, torna-se ideal para a iniciação
de jovens ou filósofos precoces na busca pelo sentido oculto das coisas. Talvez
o seu maior mérito seja desmascarar a imagem de que a filosofia é algo ocioso e
até mesmo inútil, quando não difícil ou impossivelmente compreensível. O que
importa é ser capaz de experimentar a fruição na atitude de se projetar para
além do fisicamente visível ou imediatamente cognoscível e não ter medo de
desbravar o belo mistério que repousa nas inconstâncias do ser.
REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título: 101 Experiências de Filosofia Cotidiana
Autoria: Roger-Pol Droit
Editora: Sextante
Ano: 2002
Local: Rio de Janeiro
Edição: 1ª
Gênero: Filosofia
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