sábado, 7 de janeiro de 2012

Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella (Frei Betto)

batismo de sangue"Nos dias primaveris, colherei flores
para meu jardim de saudade.
Assim, externarei a lembrança de um passado sombrio."
(Frei Tito de Alencar Lima)
 
          Neste livro de memórias, Frei Betto rompe o silêncio auto-imposto por doze anos, para narrar os acontecimentos vividos por ocasião da repressão militar pós-64. A participação dos dominicanos fora como uma batalha da violência pacífica contra a onipotência do poder militar. Uma trajetória de resistência silenciosa frente às mais atrozes torturas.
          A onda socialista irrompida no mundo também surgira no Brasil. O PCB (Partido Comunista do Brasil) - mais tarde, Partido Comunista Brasileiro (de 1961 em diante) - fora uma de suas alas e Carlos Marighella um militante e líder do partido. Segundo suas ideias, a frente em oposição à burguesia e a libertação do regime de ditadura deviam ser feitas com a luta armada revolucionária e não por meio da luta pacífica. Nesse ínterim, camponeses e proletariado deveriam se unir, uma vez que apenas movimentos de oposição surgidos espontaneamente não bastariam. Tais posturas, no entanto, discordavam das Teses do PCB. Assim, com a ida de Mariguella para a I Conferência da OLAS (Organização Latino-americana de Solidariedade) em 1967, a contragosto do PCB, deu-se sua expulsão e ruptura com o Comitê Central do partido. Marighella via a guerrilha como uma forma de derrubar por terra as forças opressoras. Apoiada externamente pelas lutas dos países socialistas e internamente por toda a área de apoio logístico, o fundamental era conscientizar o povo de que a guerrilha defendia seus interesses. Com isso, em 1968 surgia a Ação Libertadora Nacional (ALN), uma organização revolucionária de guerrilheiros, dirigida por Marighella.
          O DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) foi um órgão criado para a manutenção da ordem, sob a ótica de agir em defesa de princípios ocidentais, cristãos e democráticos. A tortura era algo institucionalizado e a "segurança nacional" o emblema que a justificava. Um dos maiores carrascos do DOPS de São Paulo, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, dedicava sua vida a caçar e torturar militantes da ALN, com o objetivo de encontrar Marighella no que ficou conhecido como "Operação Bata Branca", um esquema montado pela polícia para capturá-lo através dos dominicanos. O nome refere-se ao hábito que os religiosos usavam.
          Frei Betto ajudou muitos manifestantes procurados pelo DOPS a atravessarem a fronteira com o Uruguai. Com isso, os militares passaram a caçá-lo sob a acusação de disseminar ideias subversivas. Ele havia vivido um tempo como clandestino em São Paulo e Porto Alegre. As Irmãs de Jesus Crucificado deram-lhe abrigo por algum tempo. Em uma emboscada, foi pego mas, mesmo com os interrogatórios longos e exaustivos, escapou das torturas graças às relações que a Igreja vinha estabelecendo com os ditadores. Mais tarde, os padres Marcelo e Manuel, que o ajudaram a esconder, também foram capturados.
          Através das torturas praticadas contra Frei Fernando e Frei Ivo em novembro de 1969, o DOPS chegou ao convento dos dominicanos em São Paulo, prendendo vários outros religiosos, dentre eles Frei Tito de Alencar Lima. O episódio que culminou na morte de Carlos Marighella na noite de 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, foi encoberto com uma versão da polícia, como sendo consequência de sua resistência armada à voz de prisão. Nessa versão, os freis Fernando e Ivo foram postos como traidores de Marighella e responsáveis pelo tiroteio que desencadeou na morte do líder revolucionário, da investigadora Estela Borges Morato e do alemão Friederich Adolf Rohmann. Marighella, que fora fuzilado na rua, foi colocado no carro onde estavam os freis para incriminá-los de traição. O Dr. Mário de Passos Simas foi o defensor dos religiosos no julgamento dos dias 13 e 14 de setembro de 1971.
          Na última parte de seu livro, Frei Betto apresenta o dossiê de Frei Tito de Alencar Lima: o religioso que se tornou símbolo internacional das vítimas de tortura no Brasil. Após ser libertado como preço de um resgate de uma lista de setenta presos políticos em dezembro de 1971, decorrente do sequestro do embaixador suíço, Giovanni Enrico Bücher, mesmo que contrariado, Frei Tito foi para Santiago do Chile e depois para Paris. Em L´Arbresle, no convento de Saint Jacques, começou a ter alucinações, perturbado pela constante presença psíquica do delegado Fleury. Em um dia repleto de tarefas, Tito ingeriu um tubo de Valium, em uma segunda tentativa de suicídio (a primeira foi na prisão, após ter cortado a prega do cotovelo com uma lâmina). Frei Tito acreditava que sua morte poderia abrandar a prática de tortura no Brasil. Na ocasião da visita de sua irmã no Natal de 1973, Nildes teve a impressão de o estar vendo vivo pela última vez. Frei Tito foi encontrado pendendo sob a copa de um álamo em 10 de agosto de 1974.
          Em Batismo de Sangue a veracidade com que o autor narra as atrocidades cometidas pela repressão suscita revolta e indignação. É o relato de quem presenciou e viveu dias e noites sombrias nas catacumbas do DOPS. Acima de tudo, é o testemunho de uma práxis cristã viva e encarnada, próxima do que viveu Jesus: humilhação, desonra, ódio, tortura e repressão. A postura dos religiosos dominicanos reflete da maneira mais concreta o padecimento em prol da garantia dos direitos à liberdade e democracia.
 
BETTO, Frei. Batismo de Sangue: os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1986. 8ª ed. 284 pgs.
 
Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 2007:

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