Definidas pelo próprio autor como “narrativas
fantásticas” esse livro traz dois pequenos contos, os quais repercutem o
talento do consagrado autor russo. Histórias que transcendem a narrativa dos
fatos e contribuem filosoficamente para refletir sobre as questões que permeiam
a existência humana e temas recorrentes na obra dostoievskiana: perdão, culpa,
significado da vida, transcendência, etc..
Ambos os contos possuem um traço em comum que é
o caráter autoreflexivo diante de um fato inicial, ao estilo de monólogos. No
primeiro, A Dócil (1876), um
ex-oficial que havia sido humilhado por recusar-se a cumprir uma ordem e que
agora era dono de uma casa de penhores, de repente se apaixona por uma jovem recém-saída
da adolescência, pobre e órfã. Nessa narrativa breve, ele apresenta suas
impressões sobre a vida a dois, buscando desvendar os segredos que a parceira
trazia em seu íntimo e, para além de tais reflexões, buscando compreender os
motivos que a levaram ao suicídio, quando tudo parecia ir muito bem. Ele havia
evitado que a garota se casasse com um homem rude e também contribuíra para que
ela saísse da casa das tias. No entanto, era ele quem ditava às regras dentro
de casa, fazendo com que ela se tornasse uma esposa submissa e servil,
enunciando os ares introspectivos em que vivia. Tudo isso é refletido quando
ele se encontra diante do corpo da amada, arrependido por seus cinco minutos de
atraso, o que, em sua opinião, poderia ter evitado aquele desfecho trágico.
No segundo, O
Sonho de um Homem Ridículo (1877), um homem decidido a por fim na própria
vida, está sentado em sua poltrona, diante de um revólver carregado.
Contemplando a arma, adormece e viaja por um sonho utópico que, em síntese,
traduz a dor e a beleza da própria vida. Ainda que seja um sonho, reveste-se do
mais puro realismo, e leva-o à compreensão de que é ele mesmo quem perverte as
situações, fazendo com que elas pareçam não ter qualquer valor ou que sejam
piores do que realmente são. Tudo isso é vivenciado a partir do encontro com
uma menininha, que o leva a enxergar que ainda há muito o que viver. No mais
belo estilo dostoievskiano, a reflexão conduzirá o homem a ver a beleza oculta
nas tragédias da vida, fazendo com que ela seja algo válido: “’A consciência da vida é superior à vida, o
conhecimento das leis da felicidade – é superior à felicidade’ – é contra isso
que é preciso lutar!” (p. 123).
As duas pequenas narrativas condensadas nesse
livro permitem uma breve noção do pensamento filosófico de Dostoievski em seu
caráter existencialista. Autor de livros grandes e densos, nesses dois contos é
possível compreender como o homem está no centro de sua própria metafísica,
sendo que as inconsistências da vida é o que o levam a refletir sobre como ele
se posiciona frente aos acontecimentos. Interessante na obra do pensador russo
é o fato de que, diferentemente de muitos pensadores existenciais que exageram
no drama, dando a impressão de que a vida, ainda que bem vivida, é um constante
pessimismo, Dostoievski, ao contrário, parte dos dramas para as superações,
dando o tom de transcendência e realização humanas. Para ele, o homem que
reflete seus infortúnios, ainda que seja triturado por eles, no final deve
encontrar um caminho de síntese que o faça transcender para níveis existenciais
mais elevados e reconfortantes. É o que acontece, principalmente na segunda
narrativa desse livro. Ao leitor que se pôs a refletir um pouco com essas duas
histórias, fica o convite para mergulhar ainda mais na obra de Dostoievski que,
louvores à parte, é um dos melhores remédios para as grandes crises existenciais
dos tempos modernos.
REFERÊNCIA
LITERÁRIA
Título: Duas Narrativas Fantásticas
Subtítulo: A Dócil e O Sonho de um Homem Ridículo
Autoria: Fiódor Dostoiévski
Editora: Editora 34
Ano: 2003
Local: São Paulo
Gênero: Drama | Filosofia
Confira o curta-metragem de "O Sonho de um Homem Ridículo" produzido em 1992:
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