Substanciando uma obra marcadamente
autobiográfica, o autor lança mão do personagem João Falcão para abordar a
questão do progressivo desencanto pela vida religiosa, consequência de um
início sem raízes fideístas, mas tão somente estéticas.
João Falcão é um seminarista que está bem
próximo da tonsura, ou seja, o ritual onde lhe seria conferido o primeiro grau
da ordem. Em um livro diário verde, registra as principais memórias que contam
sua crise vocacional, durante os anos de 1944 e 1945. O ingresso do jovem João
no seminário havia se dado essencialmente porque achava bonito o “ser padre”,
de forma que o desejo de consagrar sua vida a serviço de Deus e da Igreja não
era o fator elementar a impulsionar sua vocação. Cumpridor de uma rotina
repleta de estudos nas mais diversas áreas da filosofia e teologia, a ele
encantavam os livros literários tidos como proibidos aos alunos, uma vez que
poderiam fazê-los questionarem aspectos fundamentais de sua vocação, em um
momento em que não estavam preparados para amadurecerem respostas para as
mesmas. Essa desobediência já era um fator para que tivesse alguns atritos com seus
superiores.
Na narrativa dos dias vivenciados pelo
seminarista, vemos suas dúvidas vocacionais se entrelaçando em meio aos fatos
corriqueiros do cotidiano. Estudos, rezas, celebrações, atividades recreativas,
férias ocasionais são alguns desses momentos nos quais o autor informa ao
leitor sobre seu calvário, no qual sua própria vocação estava em coma,
conduzida sempre mais para a inevitável extinção. Em uma época em que a vocação
sacerdotal era sinal de status e um
motivo de orgulho para os familiares do vocacionado, João se angustia perante o
choque que seus pais levariam ao saber que o filho estava deixando uma carreira
promissora para entregar-se às aventuras decepcionantes do mundo. Contudo, ele
opta pelo caminho da coerência, já que a imanência para com o divino era algo
essencial que lhe faltava para continuar galgando os passos do sacerdócio.
A carga de responsabilidade para com a própria
vocação que o livro transmite reflete a forma séria e exigente com que a
sociedade e a igreja tratavam a preparação sacerdotal naquele tempo. Nas
memórias do seminarista, vemos a formação muito mais como um peso a se
carregar, ainda que a duras penas, do que uma fase de discernimento necessária
para que o jovem seja capaz de consagrar sua vida espontaneamente à causa
abraçada. O ambiente de erudição do seminário não deixa espaço para o debate
das próprias crenças, nem para o amadurecimento das dúvidas vocacionais. O
episódio cômico em que alguns seminaristas veem a filha do porteiro nua em um
jardim é tratado como se os olhos dos mesmos houvessem levado-os a cometerem um
crime contra a castidade, requerendo uma expiação severa.
Por meio dessa confissão pública, o autor
concretiza uma crítica ao rigorismo daquele tempo, o que fez com que os
ambientes de formação religiosa fossem pintados como locais à parte do mundo,
ainda que inseridos nele e o tempo todo sujeitos às suas ciladas. Outra leitura
que também pode ser feita e, nesse sentido, estendida a outras áreas da vida,
que não a dimensão religiosa, é o perigo de permanecer em um caminho apenas
pelo fascínio estético. João Falcão era um jovem que, mesmo advertido sobre a
proibição de algumas leituras, não se rendia à curiosidade pelo conhecimento.
Isso não faria dele um infrator, já que sua permanência no seminário apenas por
achar bonita a prática sacerdotal, constituía-se em sua maior traição. Contudo,
a insistência nesse caminho aumentava-lhe cada vez mais a angústia, de forma
que, ao informar ao crucificado sobre sua crise de fé, necessitava também dar
uma resposta a si mesmo e àqueles que nele depositavam suas esperanças.
REFERÊNCIA
LITERÁRIA
Título: Informação ao Crucificado
Autoria: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1999
Local: São Paulo
Edição: 5ª
Gênero: Autobiografia | Espiritualidade | Drama