sábado, 29 de dezembro de 2012

Noites Brancas (Fiódor Dostoiévski)



Reconhecida como mais uma das grandes obras de Dostoiévski e da literatura russa, Noites Brancas: romance sentimental, das recordações de um sonhador foi publicada em 1848, antes do exílio do autor. Portanto, de certa forma, assinala o fim do primeiro período de sua carreira, em um estilo literário bastante próximo ao romantismo, o que vai na contracorrente de sua época, que privilegiava o realismo.
          O texto é narrado em uma novela de estilo romântico. O termo “noites brancas” faz alusão ao período de verão em São Petersburgo (Rússia), quando o sol não se põe por completo, deixando os noites tão claras como os dias. Sendo assim, tal ambiente onírico ilustra externamente a atmosfera interior vivida pelo personagem sonhador e contribui para a ideia foco do romance, que trata a questão do drama do indivíduo que satisfaz seus desejos simplesmente pelo sonho. Ele vive numa penumbra fantasmagórica, como é o ambiente das “noites brancas”.
            Durante uma de suas noites, o personagem se depara com uma moça chamada Nástienka bastante encantadora e, a partir de então, tenta se aproximar para um maior contato. Porém, tal aproximação surge do acaso, quando ele a salva de um sujeito que a queria molestar. Consumado o anseio por um segundo encontro, os dois iniciam uma abertura um ao outro, revendo-se nas quatro noites seguintes. Ele, conta sua história de devaneios e solidão; ela, sua história semelhante, acrescida do fato pitoresco de que vivia presa por um alfinete ao vestido de sua vó que, por ser cega, queria ter maior controle sobre a neta. Nos encontros seguintes, a moça revela que se apaixonara por um homem, inquilino de sua avó, que partira prometendo retornar após um ano. Por ironia do destino, estavam justamente nos dias em que se completava um ano da partida do amado de Nástienka, e agradecida pela prontidão do novo amigo, resolve pedir-lhe para escrever uma carta ao amado. Nástienka havia lhe agradecido ainda, por não se ter apaixonado por ela, mas esse era um fato óbvio que ela não percebera, já que ocorria exatamente o contrário. Porém, passaram alguns dias e nada do regresso esperado. No entanto, tal regresso se dera no momento mais inoportuno para o sonhador, quando a moça já começava a dar sinais de interesse por ele, fazendo-o querer declarar seu amor por ela. O fruto disso é uma intensificação da melancolia que há muito já acompanhava seus dias, restando-lhe somente o sentimento de solidão, tão íntimo seu.
            O narrador-personagem anônimo possui uma caracterização fantasiosa. É um sujeito romântico e sonhador, a andar errante pela noite branca de São Petersburgo, cuja realidade que concebe interiormente não é compatível com a realidade exterior que o cerca. Desta forma, a dicotomia entre essas duas realidades, será o estopim de suas alienações e desgostos no episódio final. Nástienka, ao contrário, é uma sonhadora com os “pés no chão” e próxima ao mundo real, uma vez que seu maior deleite é casar-se com o homem que ama.
            Noites Brancas retrata assim, a inconsistência dos desejos frente às escolhas, quando esses dependem dos rumos que outros deram a estas. Trata-se de uma obra bastante diversa das demais do autor, que se destaca pelos enredos longos, com tramas conflituosas e personagens cuja personalidade geralmente é abrangida de uma forma universal e complexa.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Noites Brancas: romance sentimental (das recordações de um sonhador). São Paulo: Editora 34, 2005. 96 pgs. 
 

Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 1957:

sábado, 22 de dezembro de 2012

Através do Espelho (Jostein Gaarder)


        Mais uma vez usando sua capacidade reflexiva, fruto de uma carreira como docente em Filosofia, que lhe inspirou na elaboração de sua obra mais famosa, O Mundo de Sofia, Jostein Gaarder desta vez procura confrontar a iminência da morte, como uma forma de entender a carga de sentido da vida.
         Cecília Skotbu é uma garotinha portadora de câncer, em estágio terminal. Mesmo não reclamando continuamente de dores, sente que seu corpo se enfraquece cada vez mais, mas mesmo assim acredita firmemente que vai ficar boa. Sua queixa principal era não poder fazer diversas coisas que as outras crianças faziam e estar impedida de esquiar na neve. Confinada a maior parte do tempo dentro de seu quarto e presa a sua cama, Cecília via o mundo apenas de sua janela. No entanto, seus pais e avós dedicavam-lhe todo o carinho e atenção, mesmo sentindo o coração apertado por serem tão impotentes diante de sua doença, restando-lhes apenas se conformarem com o que inevitavelmente aconteceria a Cecília.
        Em uma época de Natal, quando as atenções de todos voltavam-se para os preparativos finais da tradicional celebração em família, Cecília recebe uma estranha visita: um anjo chamado Ariel. Em um primeiro momento, surpresa diante daquele estranho ser, Cecília logo se simpatiza com o anjo e começa a se abrir. O mesmo acontece da parte do anjo, que se revela um grande companheiro para a solitária menina. Cecília e Ariel começam a conversar sobre diversas coisas existentes no céu e na terra. Nesse diálogo, Cecília aproveita para esmiuçar suas dúvidas acerca do agir de Deus, a natureza dos anjos, o paraíso celestial, o companheirismo dos anjos da guarda, etc.. Encantada diante de algumas respostas, Cecília anota frases interessantes em seu caderninho chinês, que conservava debaixo de sua cama, meditando em seu coração aquilo que registrava. Por outro lado, Ariel revela sua curiosidade em compreender coisas como o que é ter o corpo revestido por uma pele, como é sentir o gosto e o cheiro das coisas e como são as sensações de frio, calor, bem como a sensação da dor. Dessa forma, fica clara a distinção entre as naturezas angelical e humana.
            Com o passar do tempo, a amizade entre Ariel e Cecília se estreita cada vez mais. Ajudada pelo anjo, a menina finalmente consegue voltar à montanha e esquiar, além de fazer diversas outras coisas de que se afastara desde que adoecera. Ariel se tornara visivelmente o anjo da guarda que sempre fora para Cecília, mas que demonstra sua amizade sincera, até o momento em que a menina adormece serenamente em sua cama, para nunca mais acordar.
           Através do Espelho busca enfatizar, por meio do carisma infantil, o outro lado da existência humana. A presença do anjo junto a Cecília se torna a melhor maneira de fazer com que ela não se sinta só em um momento que sua mente infantil não seria capaz de compreender a dor que sua morte traria a sua família. O diálogo entre os dois é rico em sentido existencial, uma vez que o fato de poder sentir o gosto dos alimentos, tocar a neve macia e vê-la se dissolver, sentir o calor do fogo em uma noite de inverno se tornam motivos mais do que suficientes para cuidar, preservar e reverenciar a vida como a mais bela expressão do ser. Desta forma, na linguagem cândida das crianças perceberem e falarem do mundo, Jostein Gaarder busca dissociar nos mistérios simples da vida, o sentido oculto da palavra morte. Somente uma vida vivida com intensidade torna-se capaz de aceitar com serenidade o fim de tudo o que é belo, para dar lugar a tudo o que é novo.


REFERÊNCIA LITERÁRIA
Título:       Através do Espelho
Autoria:     Jostein Gaarder
Editora:     Companhia das Letras
Ano:          1998
Local:        São Paulo
Edição:     
Gênero:     Romance

sábado, 15 de dezembro de 2012

O Misterioso Caso de Styles (Aghata Christie)

misterioso caso de styles, oPublicado em 1920 e narrado no melhor estilo policial, O Misterioso Caso de Styles é o primeiro livro de Aghata Christie, mundialmente conhecida como A Rainha do Crime. Essa obra é também a primeira aventura do personagem principal, o detetive belga Hercule Poirot, famoso por sua perspicácia e visão de conjunto ao desvendar os casos criminosos que analisa, fazendo lembrar muito outro personagem não menos famoso, Sherlock Holmes, criação de Artur Conan Doyle.
            Após regressar das fronteiras de uma guerra, o capitão Arthur Hastings, narrador em primeira pessoa, foi passar uma temporada junto a amigos na mansão Styles, convidado por John Cavendish. Saudado pelos proprietários Alfred e Emily Inglethorp, Hastings mal podia supor que uma terrível atrocidade estava sendo arquitetada e abalaria a tranquilidade de sua estadia na mansão.
            Durante uma noite, todos os presentes na casa são surpreendidos por um grito lancinante vindo do quarto da Sra. Inglethorp. Ao conseguirem entrar lá, encontram a ricaça caída e morta, supostamente devido a um ataque cardíaco. Em breve chegam os Drs. Wilkins e Bauerstein que atestam o óbito, mesmo sem compreender as possíveis causas determinantes, já que a paciente era extremamente cuidadosa com sua saúde e não vinha apresentando queixas de enfermidades sérias. No entanto, uma perícia no local do fato revelou indícios de que ela poderia ter sido envenenada com estricnina, uma substancia altamente letal, levantando a suspeita de assassinato.
            Diante a gravidade do fato, Hastings convoca seu amigo detetive Hercule Poirot para analisar o caso. Logo ao chegar, Poirot deixa os presentes intrigados, uma vez que para ele, elementos aparentemente fúteis e sem importância eram dignos de uma atenção melindrosa, pois tamanha insignificância poderia representar uma influência crucial no desfecho do caso. Na mansão Styles, reinava uma atmosfera enigmática que tornava a todos suspeitos, até mesmo o Sr. Inglethorp, que estava em viagem na data do ocorrido. Com isso, Poirot inicia uma série de entrevistas com os moradores e criados, encontrando uma série de depoimentos controversos, tendenciosos e até mesmos discutíveis. O detetive descobre também que a Sra. Emily havia tido uma discussão com o marido às vésperas do ocorrido, tornando-o o principal suspeito do assassinato. Mas como, se o Sr. Inglethorp (que era o segundo esposo de Emily) não se encontrava na mansão naquela noite fatídica? Qual a parcela de suspeita os enteados John e Lawrence Cavendish teriam, uma vez que seriam herdeiros da fortuna? Cinthia, que vivia na mansão por bondade e consideração da Sra. Inglethorp teria algum interesse na morte da ricaça? Um fragmento de testamento parcialmente queimado encontrado na lareira alimentaria ainda mais a hipótese de que o crime teria ocorrido objetivando a herança. A complexidade do caso se revelava um mistério até mesmo para os detetives da Scotland Yard, amigos de Poirot. No entanto, o detetive belga surpreenderia a todos ao revelar de forma genial quem era o verdadeiro criminoso e como chegou a tal constatação, contrariando as suspeitas de todos.
            Como romance de estreia, O Misterioso Caso de Styles é o início de uma série respeitada e famosa mundialmente, por desafiar engenhosamente o imaginário investigativo do leitor no desvendamento das pistas deixadas nas entrelinhas do romance. Por que sinais tão evidentes do criminoso acabam por se revelarem como armadilhas perigosas, as quais todo detetive perspicaz deve desconfiar e fugir? Talvez seja essa uma das maiores lições que o primeiro romance de Aghata Christie quer ensinar.
 
CHRISTIE, Aghata. O Misterioso Caso de Styles. São Paulo: Círculo do Livro, [s.d.]. 202 pgs.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Casino Royale (Ian Fleming)

            Criador de um dos personagens mais conhecidos e famosos dos romances policiais, Ian Fleming apresenta nessa obra, a primeira aventura do agente secreto James Bond ou 007, lançada em 1953. Uma obra em um tom bastante leve e não muito carregado de adrenalina, contrariando um pouco a imagem que, principalmente o cinema, disseminou do espião, retratando-o em emboscadas arriscadas repletas de perigo. A obra ganhou várias adaptações para as telas, em diferentes versões, sendo a última lançada em 2006, retratando um agente secreto americanizado.
        Os primórdios da carreira de James Bond e de sua transformação em um agente secreto britânico não são muito claros nessa obra. O protagonista já é um agente 007, que fora incumbido de uma missão especial por seu chefe, identificado apenas como M. Aproveitando de seus dotes para o jogo de bacará, o escopo da missão de Bond seria quebrar as apostas de Le Chiffre, um tesoureiro falido de um sindicato gerenciado pelo departamento de contraespionagem SMERSH. O confronto seria em jogos de apostas milionárias no cassino Royale-Les-Eaux (França), onde Bond se disfarçaria como um jamaicano rico. Para auxiliá-lo, Bond contaria com a ajuda da assistente Vesper Lynd, uma mulher tão atraente quanto faceira. Os agentes Felix Leiter e René Mathis das agências de espionagem CIA e Deuxième Bureau também seriam parceiros de Bond nessa missão.
            Em uma primeira rodada dos jogos, Le Chiffre ganha facilmente, escoando todo o investimento da aposta que Bond havia feito. No entanto, uma nova esperança vem à tona quando o agente Felix Leiter entrega a 007 um envelope contendo 32 milhões de francos. O jogo prossegue e, diante da ameaça de perder, um dos capangas de Le Chiffre tenta assassinar Bond por meio de um tiro silencioso e fatal que passara despercebido por todos, mas que fizera o agente se submeter um momento de constrangimento, a fim de manter-se vivo. Enfim, o jogo termina com um prêmio valioso de 80 milhões de francos para Bond, arrasando totalmente o investimento de Le Chiffre e da SMERSH.
            Contudo, mesmo tendo cumprido sua missão com louvor, Bond ainda atravessaria seu momento mais árduo. Desesperado, Le Chiffre havia sequestrado Vesper e o aprisionado em uma emboscada. James Bond seria torturado até que Le Chiffre recuperasse de volta seu dinheiro. Porém o banqueiro ganancioso também tinha seus pontos fracos e seria destruído por aqueles a quem prestava seus serviços em uma teia criminosa, cruel, mentirosa e conspiratória.
            A figura de Vesper Lynd é retratada como uma mulher apática no escopo da missão do agente 007. Porém, vítima de seu coração frágil para as mulheres, Bond se apaixonaria e pediria Vesper em casamento, logo após terminar sua missão, desejoso até mesmo de abandonar o serviço secreto. Nesse momento, Bond descobre que a agente que parecia ser um apoio em sua jornada, na verdade era uma agente dupla encarregada de espioná-lo e transmitir informações conspiratórias.
            Um dado interessante na criação do personagem de Fleming é que ele é como que o reflexo se seu ator. James Bond reúne as características idealizadas de Fleming sobre si mesmo: um espião astuto, perspicaz nos jogos de cassino e sedutor no trato com as mulheres. Dessa forma, o autor exterioriza aquelas que talvez considere serem as aventuras mais impressionantes vividas em seu imaginário e consagra o agente 007 com um dos personagens mais influentes de todos os tempos.

FLEMING, Ian. Casino Royale. Rio de Janeiro: Record, 2006. 204 pgs.

Confira o trailer da adaptação para o cinema lançada em 2006:


sábado, 1 de dezembro de 2012

As Intermitências da Morte (José Saramago)


          Publicada em 2005, nesta obra José Saramago traz um cenário inusitado por ser algo inconcebível para a finitude da existência humana: a ausência da morte. Já no inicio, a frase tema: “No dia seguinte ninguém morreu”.  O resto será um desmembramento desta tese inicial e uma análise filosófica e sociológica dos impactos de semelhante acontecimento em um mundo que, de certa forma, tem a morte como o limiar de tudo o que faz.
            A obra divide-se em três partes: na primeira, é narrada a repercussão da ausência da morte na cidade e a reação diante de tal fato; na segunda, a morte é personificada e envia uma carta comunicando seu retorno e informando também que cada habitante que teve seu destino adiado, teria um prazo de uma semana para colocar sua vida em ordem e depois morrer; na terceira, um violoncelista que recebera uma dessas cartas dialoga com a morte, de forma que ela seja humanizada.
            A ausência de atividade da morte provoca um estado de desconforto, refletido principalmente nas famílias, hospitais, governo, funerárias, cemitérios, seguradoras e muitas estruturas que vivem da logística criada para viabilizar conforto aos vivos. É como se ela fosse um fator insubstituível para o bom andamento da estrutura vigente e para a renovação do ciclo vital. Talvez esse estado de latência seja o que permite conhecer o real temor diante da morte: o medo de que ela traga um estado de inércia intransponível, de modo que tudo fique sucumbido a se cristalizar no tempo e no espaço, em uma completa e eterna inatividade. Por outro lado, a terrível ideia de eternidade passa a ser ainda mais insustentável aos mortais, uma vez que a existência mundana não é suficiente para responder aos mistérios que um possível além-mundo possa encerrar. Desta forma, não morrer seria estar eternamente preso a não descoberta do sobrenatural e, portanto, ao conformismo com o mundo presente.
            Na materialização da morte quando esta se apaixona pelo violoncelista, vê-se um interessante paradoxo. A começar pela sua forma física nos moldes de uma linda mulher, diferentemente da figura consagrada pelas artes, pinturas e literaturas medievais, como um esqueleto em vestes monásticas e uma foice à mão. O envolvimento da morte com o artista traz à tona uma relação contraditória: a morte se apaixona pela vida. Dessa forma, o anúncio de seu retorno é colocado diretamente em xeque com a natureza de sua razão de ser e existir.
            Como a própria abordagem do tema já sugere, Saramago dá um tom hilário à questão. As reações das estruturas sociais frente à ausência da morte são evidenciadas de forma cômica, a fim de demonstrar que os princípios econômicos, éticos, políticos e religiosos, que regem a sociedade são vulgares e fúteis diante das verdadeiras aspirações humanas. O regime capitalista e empresarial é tão frágil que se torna o primeiro a entrar em colapso. No entanto, o medo da inflexibilidade da morte é verdadeiro. Quando ela entra em greve, muitos ensinamentos são percebidos à medida que confronta diretamente os valores já consagrados. Com isso, Saramago mostra que os princípios éticos defendidos socialmente são deixados de lado quando uma crise abrange o contexto geral, lançando um desafio cruel aos filósofos e religiosos.
            Um dos grandes méritos da obra do escritor português, é que ela não encerra em si todas as reflexões possíveis, mas instiga ao leitor refletir a seu modo, as implicações de tal ausência. Com isso, pode embarcar em avaliações distintas com base no ângulo que melhor lhe convier. Enfim, a obra permite uma verdadeira jornada filosófica sobre a necessidade substancial de que as coisas se findem em algum momento, a fim de garantir o estado de estabilidade que elas proporcionam. Ter consciência desse fim é condição necessária para vivenciar bem o espaço limite em que a vida se manifesta.

SARAMAGO, José. As Intermitências da Morte. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 2007 pgs.