Roberto Augusto da Matta nasceu em Niterói em 1936. Foi professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade de Notre Dame (EUA). No Rio de Janeiro, dirigiu o programa de pós-graduação em Antropologia Social e foi chefe do Departamento de Antropologia. Importante sociólogo e antropólogo brasileiro, escreveu vários livros sobre a sociedade brasileira como Carnavais, malandros e herois, A Casa & a rua, universo do carnaval, além do ensaio em questão.
Uma chave de leitura para o livro está em seu próprio título, na diferença entre brasil e Brasil. O brasil, refere-se a um tipo de madeira muito apreciada à época da colonização pelos portugueses, enquanto que Brasil refere-se a um povo e um conjunto de valores, escolhas e ideais de vida que o constituem enquanto nação. É a este conceito que o autor faz alusão.
Em seu aspecto de uma sociedade em meio a tantas outras, o limiar que transcende o socialmente correto e os valores pré-estabelecidos de algumas nações, para a capacidade de misturar e acasalar as coisas é o que dá margem à criatividade do brasileiro. Nessa ótica, no aspecto quantitativo, visto a partir das estatísticas demográficas e econômicas, o Brasil deixa a desejar; por outro lado, no aspecto qualitativo, a partir dos costumes, valores e modos de fazer as coisas, o Brasil revela-se como algo que vale a pena, encontrando aí a sua identidade social. Tomando essa identidade como ponto de partida, Roberto Damatta analisa algumas particularidades da cultura do brasileiro.
A casa, muito além de um espaço geográfico, é um espaço moral de construção do brasileiro, em seu relacionamento não só entre familiares, mas também entre amigos, vizinhos, etc.. Ela é o lugar dos valores e tradições, o limiar entre um mundo interno (casa) e outro externo (rua): "[...] quando observamos que a casa contém todas essas dimensões, temos que nos dar conta de que vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar do mundo" (p. 28). Diretamente oposta à casa, está a rua, lugar do "movimento", do trabalho e da labuta, da luta pela sobrevivência, já que é um oceano de maldade e insegurança. Consequentemente, de maneira intrigante, a concepção de "trabalho" é a de castigo (do latim, tripaliare, que significa castigar com o tripaliu). O passado de escravidão da história do Brasil é um forte quesito que alimenta essa imagem.
As raças existentes no Brasil – branco, negro e índio – não seguiram a lógica dual das teorias racistas europeias e norte-americanas, de que os indivíduos deviam se relacionar em escala biológica e reprodutiva, apenas dentro de seu grupo. A miscigenação brasileira permitiu a eclosão de um grupo intermediário que o mulato (a palavra vem de mulo, ou seja, o animal ambíguo e híbrido, resultante do cruzamento de tipos genéticos diferentes) representa de modo mais evidente.
Segundo o autor, nenhum outro prato representa de maneira tão clara o brasileiro como o feijão com arroz. Também aí somos intermediários: a mistura do sólido com o líquido e sempre cozidos. A mesa não é algo simplesmente para se alimentar, mas está imbuída de um tom relacional, já que é um espaço de convívio. Até mesmo o uso de palavras como "comer" ao se referir ao ato sexual, remete à ideia de absorção, englobamento, envolvimento total, explicitando o nível de prazer que se encontra nessa prática.
A maior festa nacional, o carnaval, é o momento privilegiado de extravasamento. Ela é a oportunidade de viver os excessos encontrados naquilo que é oposto e contrário à rotina, sendo indispensável o tempo da alegria e irreverência. Com isso, promove um elo entre a casa, a rua e outro mundo. De forma contrária ao carnaval, os "ritos da ordem" – festas religiosas, comemorações civis e militares – visam celebrar a rotina. Tais formalidades são muitas vezes reveladoras de talentos e marcadas pela continência do corpo e do comportamento. Nelas, a posição que cada um ocupa – autoridade religiosa, política, civil ou militar e povo – está verticalmente circunscrita. São festas com locais de celebração definidos (igrejas, quarteis, etc..) e objetos simbólicos próprios, cuja boa realização depende diretamente do respeito às regras do protocolo.
O ensaio de Roberto Damatta visa demonstrar, em parte, algumas atitudes comportamentais e costumes que tornam o povo brasileiro um sociedade singular e bem definida diante das demais. Não é objetivo do autor fazer um raio-x do Brasil e definí-lo em critérios fechados e errôneos, por serem limitados. Ao contrário, Damatta explora em cada capítulo a capacidade de síntese dos opostos, característica do povo do Brasil. O famoso "jeitinho brasileiro" é a expressão mais completa do gesto intermediário que busca conciliar entre o "pode" e o "não pode", uma forma de alcançar satisfatoriamente os desejos. Talvez seja o jeito leve e malandro de levar a vida que faça com que o brasileiro seja um povo admirado por todo o mundo.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. 128 pgs.