O prestígio do pensamento de Santo Agostinho na filosofia e teologia patrística é algo indiscutível e incólume, bem como sua importância como bispo, santo e doutor da Igreja Católica. Contudo, essa obra vem retratar uma outra versão dos bastidores do santo, tendo sua ex-mulher, Flória Emília, como porta-voz de uma mensagem crítica. Desta forma, Flória dirige-lhe algumas considerações, 10 anos após ele ter se convertido e a abandonado, reunidas por Jostein Gaarder, após este ter contato com o texto original em uma feira de livros em Buenos Aires (Argentina), no ano de 1995.
A carta de Flória Emília surge a partir das revelações interiores feitas por Agostinho em sua obra principal, Confissões. Como uma mulher simples de seu tempo, Flória seguiria os passos de Agostinho e se dedicaria ao estudo da filosofia, no intuito primordial de compreendê-lo, mas se tornando, desta forma, uma mulher culta.
Antes de sua conversão, Agostinho e Flória haviam coabitado por 12 anos e tido um filho, Adeodato (cujo nome significa doado por Deus), que morrera. A princípio, Flória não compreendera de imediato o porquê Aurel a abandonara, indo dedicar-se a uma vida de contemplação e serviço a Deus, já que tal espírito jamais o movera anteriormente. Em seu livro, Agostinho afirma ter abandonado a mulher, por desejar dedicar-se à salvação de sua alma, de forma que tal relacionamento o atrapalhava, uma vez que o prendia às coisas carnais. No entanto, para Flória o motivo de tal abandono, longe de ser um preceito moral ou espiritual, era um princípio filosófico, denominado como continência. Com isso, Agostinho teria sido movido por uma atitude egoísta de sua parte e até mesmo pecaminosa, já que, buscando sua própria salvação, tomava tudo o que lhe fosse contrário como insídias do mal e tentações.
Outro fator preponderante para seu abandono, segundo Flória, foram as intervenções de Mônica, mãe de Agostinho. Ela teria se interposto entre o relacionamento dos dois, alimentando a ideia de que o filho vivia em pecado e, somente abandonando Flória, poderia salvar sua alma. Com isso, ela não fora sábia em dividir o que era pecaminoso do que era puro e colocava Flória como o cerne da vida desregrada do filho, não levando em conta a possibilidade de que os dois pudessem ter uma vida cristã por meio de uma vida de matrimônio. Além do mais, enquanto Mônica e Agostinho consideravam a vida terrena como algo fugaz, para Flória ela seria um presente de Deus, digno de se apreciado. O próprio Deus não deu garantias de uma pós-vida que justificassem a rejeição da vida temporal. Consequentemente, acreditar nessa pós-vida, para Flória, é viver da mais pura abstração e rejeitar a vida presente é um grande sinal de ingratidão.
O Codex Floriae é um ataque à visão exacerbadamente espiritualista de Agostinho, naquilo que para ela é uma interpretação errônea da mensagem bíblica e um mau uso dos dons de Deus. Trata-se de um ataque à Igreja enquanto instituição e não à fé cristã em si. Para além disso, é o desabafo de um coração que se sente rejeitado, quando suas intenções eram puras e retas. Tal clamor vai diretamente na contramão de um época que priorizava a vida espiritual acima de tudo e marginalizava preconceituosamente a figura da mulher, relegando-a a um ser com função biológica definida e capacidade intelectual limitada. Porém, Flória demonstra argumentativamente seu ponto de vista, embasando-o por meio de diversas citações de filósofos e autores antigos, seja como paródia, seja como intertexto. Isso reflete o caráter culto adquirido por ela e referenciado na carta, como também coloca diretamente em xeque a emocionante história da conversão de Agostinho em seus pormenores não ditos.
REFERÊNCIA
LITERÁRIA
Título: Vita Brevis
Subtítulo: a carta de Flória Emília para Aurélio Agostinho
Autoria: Jostein Gaarder
Editora: Companhia das Letras
Ano: 1997
Local: São Paulo
Edição: 1ª
Gênero: Filosofia