Clarice Lispector, foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir, através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. De origem judaica, era a terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. A família de Clarice sofreu a perseguição aos judeus, durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia, antes da viagem de emigração ao continente americano. Aportaram no Brasil quando tinha pouco mais de um ano de idade. A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de sua irmã Tania, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia – irmã, Elisa; e Haia, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, um próspero comerciante. Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche. Hospitalizada com câncer inoperável no ovário, faleceu no dia 9 de dezembro de 1977.
Seu romance A Paixão segundo G.H. é um escrito sobre a humanização vivida por uma personagem que é a protagonista da história e ao mesmo tempo a narradora em primeira pessoa. O livro é do início ao fim, profundo e de difícil compreenssão, mas ao mesmo tempo que perpassa pelo mistério vivido dentro da personagem, vai proporcionando ao leitor algumas pistas para que esse mistério não seja obscuro. Foi a forma encontrada pela narradora de trazer para a linguagem escrita aquilo que talvez não seja traduzível em palavras.
Um belo dia, durante uma manhã, uma mulher de nome G.H., acorda, toma seu café-da-manhã e se coloca pronta para as atividades de um novo dia. Parece simples até aqui, mas a própria narradora deixa claro que “... nada me fazia supor que eu estava a um passo da descoberta de um império” (p. 23). Ao se dirigir para o quarto da empregada, que havia sido despedida seis meses atrás, depara-se com tudo organizado e limpo. Observa cada detalhe de como havia sido deixado aquele ambiente. E eis que em meio a toda a organização e limpeza, defronta-se com um inseto que não caia bem em meio a tamanha ordem: uma barata. Observando aquele inseto que, a princípio lhe soava como algo ridículo e nojento, acompanha cada movimento seu e... eis que quando a barata chega na fresta da porta do armário, a mulher, com um golpe, fecha a porta, esmagando o inselto e dividindo-o em metades sem separá-lo. Pensando ter matado a barata, G.H. se dá conta de si mesma: “... que fizera eu de mim?” (p.53). A cena da tragédia vivida pelo animal faz G.H. observar cada detalhe do corpo da barata: seus olhos, sua boca, suas asas, a matéria que escorria de seu corpo. O que havia feito G.H.? Abriu as portas para todo o seu mistério interior, todo o seu lado obscuro e misterioso. Iria transcender por todo o seu mundo afetivo que, na verdade, reproduzia para si mesma o seu nada. Perpassaria pelo seu mais oculto mistério de ser... humana. Havia se desorganizado completamente à vista de uma vida em um mísero inseto que ser definhava à sua frente, ao encontro de sua própria morte: “Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano” (p. 85) e “A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima” (p.101).
A visão da barata faz G.H. sofrer uma verdadeira paixão, ao mergulhar no mistério de seu próprio ser si mesma e saber que ela existe. Coloca-lhe diante de sua própria existência: ela, G.H. que existe porque tem que ser: “Pois em mim mesma eu vi como é o inferno” (p.120). No entanto, toda essa paixão é sentida como uma libertação de si mesma. Ela, que a prepara para fazer toda a narrativa deste fato, havia dito: “Eu havia humanizado demais a vida” (p. 14) e que agora sentia-se verdadeiramente agraciada pelas descobertas que a barata lhe havia proporcionado: “O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão” (p. 170).
Enfim, A Paixão segundo G.H. é um escrito mais filosófico do que romanceado, capaz de mostrar pela crueza de tudo o que era feio na barata, a beleza de todo o existir humano.
Em todo este contexto de ascese diante da barata no armário, G.H. degusta da pasta branca que escorria do corpo do inseto. Após esse gesto, ela consegue fazer uma reorganização da bagunça em seu interior, despertando também o seu lado religioso, por meio da ligação entre o real e o divino. G.H. se reencontra após ficar perdida em si mesma, no emaranhado de tudo o que lhe veio naquele instante. Havia completado a transcendência que a traria de volta do seu próprio inferno: “Eu que pensava que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real” (p. 167).
LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 179 pgs.