sábado, 25 de agosto de 2012

A Paixão segundo G.H. (Clarice Lispector)

paixão segundo g.h., a          Clarice Lispector, foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir, através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar em crise. De origem judaica, era a terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. A família de Clarice sofreu a perseguição aos judeus, durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia, antes da viagem de emigração ao continente americano. Aportaram no Brasil quando tinha pouco mais de um ano de idade. A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de sua irmã Tania, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia – irmã, Elisa; e Haia, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, um próspero comerciante. Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche. Hospitalizada com câncer inoperável no ovário, faleceu no dia 9 de dezembro de 1977.
          Seu romance A Paixão segundo G.H. é um escrito sobre a humanização vivida por uma personagem que é a protagonista da história e ao mesmo tempo a narradora em primeira pessoa. O livro é do início ao fim, profundo e de difícil compreenssão, mas ao mesmo tempo que perpassa pelo mistério vivido dentro da personagem, vai proporcionando ao leitor algumas pistas para que esse mistério não seja obscuro. Foi a forma encontrada pela narradora de trazer para a linguagem escrita aquilo que talvez não seja traduzível em palavras.
          Um belo dia, durante uma manhã, uma mulher de nome G.H., acorda, toma seu café-da-manhã e se coloca pronta para as atividades de um novo dia. Parece simples até aqui, mas a própria narradora deixa claro que “... nada me fazia supor que eu estava a um passo da descoberta de um império” (p. 23). Ao se dirigir para o quarto da empregada, que havia sido despedida seis meses atrás, depara-se com tudo organizado e limpo. Observa cada detalhe de como havia sido deixado aquele ambiente. E eis que em meio a toda a organização e limpeza, defronta-se com um inseto que não caia bem em meio a tamanha ordem: uma barata. Observando aquele inseto que, a princípio lhe soava como algo ridículo e nojento, acompanha cada movimento seu e... eis que quando a barata chega na fresta da porta do armário, a mulher, com um golpe, fecha a porta, esmagando o inselto e dividindo-o em metades sem separá-lo. Pensando ter matado a barata, G.H. se dá conta de si mesma: “... que fizera eu de mim?” (p.53). A cena da tragédia vivida pelo animal faz G.H. observar cada detalhe do corpo da barata: seus olhos, sua boca, suas asas, a matéria que escorria de seu corpo. O que havia feito G.H.? Abriu as portas para todo o seu mistério interior, todo o seu lado obscuro e misterioso. Iria transcender por todo o seu mundo afetivo que, na verdade, reproduzia para si mesma o seu nada. Perpassaria pelo seu mais oculto mistério de ser... humana. Havia se desorganizado completamente à vista de uma vida em um mísero inseto que ser definhava à sua frente, ao encontro de sua própria morte: “Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano” (p. 85) e “A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima” (p.101).
          A visão da barata faz G.H. sofrer uma verdadeira paixão, ao mergulhar no mistério de seu próprio ser si mesma e saber que ela existe. Coloca-lhe diante de sua própria existência: ela, G.H. que existe porque tem que ser: “Pois em mim mesma eu vi como é o inferno” (p.120). No entanto, toda essa paixão é sentida como uma libertação de si mesma. Ela, que a prepara para fazer toda a narrativa deste fato, havia dito: “Eu havia humanizado demais a vida” (p. 14) e que agora sentia-se verdadeiramente agraciada pelas descobertas que a barata lhe havia proporcionado: “O amor já está, está sempre. Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão” (p. 170).
          Enfim, A Paixão segundo G.H. é um escrito mais filosófico do que romanceado, capaz de mostrar pela crueza de tudo o que era feio na barata, a beleza de todo o existir humano.
          Em todo este contexto de ascese diante da barata no armário, G.H. degusta da pasta branca que escorria do corpo do inseto. Após esse gesto, ela consegue fazer uma reorganização da bagunça em seu interior, despertando também o seu lado religioso, por meio da ligação entre o real e o divino. G.H. se reencontra após ficar perdida em si mesma, no emaranhado de tudo o que lhe veio naquele instante. Havia completado a transcendência que a traria de volta do seu próprio inferno: “Eu que pensava que a maior prova de transmutação de mim em mim mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E que assim me aproximaria do... divino? do que é real? O divino para mim é o real” (p. 167).
 
LISPECTOR, Clarice. A Paixão segundo G.H.. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 179 pgs.

sábado, 18 de agosto de 2012

A Metamorfose (Franz Kafka)

metamorfose, a          Franz Kafka nasceu em Praga (Áustria-Hungria, atual República Checa) no dia 3 de julho de 1883 de uma família de classe média judia, filho mais velho de Herrmann Kafka, um abastado comerciante judeu, e de sua esposa Julie, nascida Löwy. Depois dele, nasceram dois meninos, que morreram pouco tempo após o nascimento, fato que segundo alguns psicólogos especialistas na obra de Kafka, seria um fator determinante para o sentimento de culpa presente nos seus livros. O corpo de suas obras escritas (a maioria incompleta e publicada postumamente) destaca-se entre as mais influentes da literatura ocidental. Seu estilo literário presente em obras como a novela A Metamorfose (1915), e romances incluindo O Processo (1925) e O Castelo (1926) retratam indivíduos preocupados em um pesadelo de um mundo impessoal e burocrático. Kafka faleceu em Klosterneuburg no dia 3 de junho de 1924.
          Gregor Samsa, o protagonista de A Metamorfose, trabalhava como vendedor e levava uma vida tranqüila, inteiramente dedicada à profissão, junto a seus pais e sua irmã mais nova. Em uma manhã, ao despertar de súbito para mais um dia de trabalho, se percebe como tendo se transformado em um inseto gigantesco. Ao invés de desesperar-se diante da inesperada metamorfose, Gregor sente-se invadido pelas preocupações com a vida profissional. Tudo o que tinha a fazer era levantar e tentar compensar o atraso com o trem da próxima partida. No entanto, como se não lhe bastasse as dificuldades em lidar com os movimentos do próprio corpo, havia ainda a preocupação sobre como sua família e seu patrão reagiriam à transformação sofrida por ele. Diante do insistente pedido do pai para que saísse do quarto, já que até mesmo seu patrão o aguardava na sala, curioso pelo motivo de sua falta ao emprego, Gregor se apresenta causando o espanto de todos.
          A forma como a família de Gregor lida com sua metamorfose súbita, permite uma análise questionadora do fenômeno da rejeição. O enredo da história leva-nos a refletir sobre como uma criatura humana e consciente, que é relegada à natureza de um inseto, vê-se surpreendida por um colapso em seus mais estreitos laços afetivos, justamente no momento que mais necessita. Aqueles de quem se esperaria mais amor são os que mais o repugnam e o repelem em seu próprio ambiente, por serem incapazes de compreender a condição a que foi rebaixado. Um tênue fio de compaixão e amor liga seus pais e sua irmã a Gregor, mesmo que encoberto pelo sentimento de repulsa, devido a sua categoria como inseto. Como superariam seus preconceitos interiores a fim de possibilitarem a Gregor um tratamento digno, mesmo que metamorfoseado em uma criatura repugnante?
          Diante de toda a transparência e realidade com que os fatos são narrados, Kafka visa também levar o leitor a uma reflexão sobre, por exemplo, o que teria levado Gregor a transformar-se num inseto e como sairia dessa situação. Em virtude disso, o leitor é conduzido a questionar-se sobre o mecanismo de rejeição dominante numa sociedade que não dá espaço para a convivência entre homens e “insetos”, ou pelo menos a dificulta pela exclusão, quando não atende aos seus parâmetros de normalidade.
          Mesmo alimentando a esperança de um final feliz, o conto de Kafka é essencialmente dramático. A história chega até mesmo a parecer cômica em alguns aspectos, o que talvez alivie um pouco o peso da lição moral que encerra nas entrelinhas. Mas diante de todo o contexto, o que fica evidente são os dois pólos de um mesmo convívio: a família e o inseto gigante. A busca da reconciliação no elo que une o repugnante ao legitimamente humano é o grande segredo dessa aceitação acolhedora.
        A obra ganhou uma adaptação cinematográfica, produzida pelo diretor português Frederico Beja em 2008.

FAFKA, Franz. A Metamorfose. São Paulo: Nova Época Editorial, 1948. 88 pgs.

Confira o trailer da adaptação da obra lançada em 2008:

sábado, 11 de agosto de 2012

A República dos Bichos (Paulo Caldas)

a republica dos bichos          Este livro destina-se ao público infanto-juvenil, mas trata de temas profundamente adultos. Entre outras obras do autor, estão Era uma vez no Quintal, Era uma vez na Fazenda, Asas pra que te quero, Destino: cidade, O Fascínio da Caixa Preta e Alma de Artista.
     Os bichos do zoológico tinham uma vida degradante, principalmente nos fins de semana, quando a visitação era mais intensa. Para satisfazer seu lazer, seres humanos mal-educados espalhavam lixo pelo zoológico, atiravam objetos nas jaulas dos bichos, além de submetê-los ao estresse. Dr. Arnaldo, veterinário, até tentou suspender a visitação por uns dias mas sua tentativa foi em vão.
          Revoltados com sua situação, os bichos resolvem se unirem, a fim de procurarem melhorias. Liderados pelo sapo Ageu, inteligente, culto e de excelente retórica, cada classe elege um representante para integrar a comissão de frente das negociações. Estava lançada a base do governo que era a Comissão das Espécies, integrada pela lagartixa Arlete, o papagaio Artur, a coruja Alice, a cigarra Amélia Emília e o presidente sapo Ageu. A partir daí o jornal A Tribuna dos Bichos seria o principal veículo de comunicação das decisões da comissão aos demais bichos. Entre as principais reivindicações estavam: redução do horário de visitação nos fins de semana; melhoria da qualidade dos alimentos servidos; e colocação de placas de advertência e educativas para que os humanos não molestassem os animais.
       Com as bases do governo montadas, as propostas foram levadas à diretoria do zoológico, deixando o diretor perplexo diante da audácia e organização da bicharada. Como em todo e qualquer caso, nenhuma decisão é unânime, haviam também as forças de oposição. Era o caso do gambá Abelardo, o porco-espinho Anselmo e o jacaré Agápito, que se opunham à Junta Governativa. Dá-se então, a eclosão de diversos partidos como o Partido dos Répteis em Geral (PRG) e o Partido Intransigente Radical (PIR).
          Frente ao fortalecimento do governo, forma-se a Assembleia Constituinte, responsável por elaborar a Carta Magna que regiria a futura República dos Bichos. Tudo pronto e acertado, é instaurada a república com direito a uma bela apresentação da cigarra Amélia Emília e do guaxinim Aprígio Pavaroti, ambos representantes da comissão de cultura. No entanto, a república enfrenta forças oposicionistas de resistência por parte da diretoria do zoológico. Como nas relações ecológicas, também aqui predominou o mais forte. Com a derrubada da república, restava ao seu principal representante, o sapo Ageu, o exílio, a fim de não ser capturado e morto.
          A obra de Paulo Caldas é uma paródia do que acontece nas verdadeiras relações políticas. O modo como o autor articula a bicharada e os dá nomes característicos fornece um tom muito bem humorado a história. A República dos Bichos é uma forma extremamente divertida e fácil de se ter as primeiras lições sobre o mundo da política.
 
CALDAS, Paulo Fernando Lins. A República dos Bichos. Recife: Edições Bagaço, 1994. 108 pgs.

domingo, 5 de agosto de 2012

O Pequeno Príncipe (Antoine de Saint-Exupéry)


“Torno-me responsável por tudo aquilo que cativo”

Publicado em 1943 nos Estados Unidos, O Pequeno Príncipe logo se tornou uma das obras mais populares e lidas em todo o mundo. É a terceira obra literária mais traduzida, depois da Bíblia e do romance O Peregrino, já tendo sido publicado em mais de 160 línguas ou dialetos. Seu sucesso mereceu uma adaptação para o cinema lançada em 1974. No Japão foi construído um museu que retrata memórias do personagem principal.
A uma primeira impressão, a obra se apresenta como direcionada ao público infantil, por possuir linguagem simples, ilustrações coloridas e conteúdo breve. No entanto, o próprio autor deixa claro que, embora assim aparente, a mensagem se direciona aos adultos, uma vez que são os que mais têm necessidade de recuperar a infância perdida ou esquecida dentro de si.
Durante uma viagem, o avião de um homem (que por sinal é o próprio narrador) cai no Deserto do Saara e, enquanto se empenha no conserto, ouve uma voz cândida lhe pedindo que desenhasse uma ovelha. Intrigado com tal pedido, logo inicia um diálogo com o pequeno príncipe no que este lhe diz que o motivo de seu desejo é que ele vinha de um planeta muito pequeno e queria que a ovelha pudesse comer os baobás, os quais lhe traziam grandes problemas pelo espaço que ocupam. No entanto, tal pedido lhe trazia também uma preocupação, já que a ovelha poderia comer uma flor muito especial que era sua companhia. Porém, essa flor era muito exigente, o que fez com que o pequeno príncipe deixasse o planeta e iniciasse uma longa jornada que o levaria a conhecer diversos mundos até desembarcar na Terra.
No primeiro planeta e no segundo havia um rei que desejava fazer do príncipe seu súdito e um homem presunçoso carente de aplausos, respectivamente. A atitude desses adultos assustara o pequenino e o fizera continuar sua jornada. No terceiro e no quarto, havia um bêbado e um homem de negócios. Cada vez mais o príncipe se surpreendia em como os adultos podiam ser tão estranhos ao se preocuparem somente com seus próprios interesses. No quinto planeta, bem menor do que os anteriores, um acendedor de lampiões tinha muito trabalho em acender e apagar diariamente a lâmpada. Como os dias duravam pouquíssimo tempo, sua rotina era exaustiva, mas agradava ao príncipe que o planeta tivesse muitos pôr-do-sol. O sexto planeta era grande e um geógrafo se ocupava na tarefa de explorá-lo e conhecer-lhe as fronteiras. Interrogando o príncipe sobre como era o lugar de onde tinha vindo, recomendou-lhe que fosse ao planeta Terra que era muito bonito.
Em sua visita a terra, o príncipe de depara com um imenso jardim de rosas e se recorda de sua amiga, que se considerava a única e mais bela rosa do universo. Imerso nessa meditação, encontra uma raposa que se apresentou como sendo perigosa mas que, se fosse cativada, tornar-se-ia uma grande amiga. E assim se fez... Além do mais, a amizade feita com o animal levou-o a compreender que ele amava sua rosa, mesmo sendo vaidosa e egoísta, por tê-la cativado, tornando-se assim responsável por ela. Desta forma, o pequeno príncipe compreendera que desejava voltar a seu planeta por amar sua rosa. E isso o faria tolerar aquilo que, de certa forma, o fazia ter certa repugnância nela. Contudo, ele se despediria pesaroso do homem que havia encontrado consertando o avião e que agora compreendera que o passar dos anos o fizera perder a capacidade de ver além de como as coisas se apresentam aos olhos. Marcado pelo jovenzinho, esse homem se tornara convicto de que, sempre que olhasse as estrelas, se lembraria de seu amigo.
Visto por uma mente adulta, a história de O Pequeno Príncipe se mostra como desinteressante e infantil. No entanto, tamanha simplicidade visa resgatar a inocência de que as crianças são dotadas, fazendo-as os únicos seres humanos passíveis de um amor verdadeiro e puro. O príncipe fora embora por não gostar das atitudes de sua rosa. Porém, nos outros planetas por que percorrera, encontrara pessoas que se satisfaziam em sua solidão. No entanto, eram pessoas frias, sem gosto pela vida, presas à rotina maçante de repetirem sempre as mesmas coisas. O tempo, a distância e o diálogo com a raposa, fizeram-lhe compreender que o amor deve superar os gestos e atitudes negativos e reconhecer que a presença do outro é a única forma de não se sufocar pelo excesso de si mesmo. Somente assim, a relação e o amor se tornam férteis, mesmo que isso venha a trazer alguma tristeza.

EXUPÉRY, Antoine de Saint-. O Pequeno Príncipe. Rio de Janeiro: Agir, 1962. 75 pgs.

Confira um trecho da adaptação para o cinema lançada em 1974: